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O outono do general aos 50 anos dos Direitos Humanos
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Outro dia, um repórter de rádio perguntou a um entrevistado quais foram os fatos políticos mais importantes do ano.
Achei estranha a pergunta, mas
me dei logo conta de que o ano
estava acabando e que, nesta
época, se fazem mesmo essas
perguntas.
O general Pinochet e a comemoração dos 50 anos da Declaração dos Direitos Humanos
vieram à minha cabeça.
A prisão do general, no momento em que damos o balanço
de meio século, acabou se tornando o fato de maior repercussão num mundo onde os problemas continuam voando como
as pedras na Palestina e os dólares vagabundos nas aplicações
mundiais.
Todas as revistas do mundo,
reconhecendo que há muito a
fazer, acabaram apresentando
um saldo positivo no campo dos
direitos humanos. No Brasil,
com José Gregori recebendo o
prêmio da ONU, temos também
o que comemorar.
Pessoalmente me alegra vê-lo
se destacar nesse campo, pois há
quase duas décadas participamos juntos da fundação da Comissão Teotônio Vilela, que tinha vários intelectuais de São
Paulo e Helio Pelegrino e eu
vindos do Rio. Gregori era combativo e moderado, características que o fazem adequado a esta delicada função de governo.
Pena é que talvez por sua origem católica não tenha dado a
ênfase necessária aos direitos
dos homossexuais nos documentos que orientam a posição
do governo nesse campo. Os assassinatos prosseguem num ritmo cadenciado.
A prisão de Pinochet, que
aconteceu meio espontaneamente, acabou sendo o ponto
decisivo das comemorações.
Funcionou como uma espécie
de gancho para que a mídia e
grupos de direitos humanos
bombardeassem as ditaduras
militares e seus crimes.
Se, no entanto, houvesse uma
discussão mais ampla, talvez o
centro dessas reflexões tivesse se
deslocado, pois a análise da
conjuntura num mundo globalizado aponta para outros problemas graves. O principal deles
é o da imigração num mundo
globalizado. Mercadorias e dinheiro circulam com facilidades, ao passo que as pessoas são
cada vez mais pressionadas a
não tentarem vender onde
queiram sua força de trabalho.
Uma boa parte da humanidade está em trânsito, fugindo de
guerras localizadas, choques
tribais, catástrofes ecológicas
ou mesmo o desemprego irremediável de economias em
frangalhos. Em trânsito ou escondida por trás de trabalhos
clandestinos, esta parte da humanidade deveria ser objeto de
uma reflexão.
Ela coloca em dúvida as promessas do capitalismo que suplantou a economia feudal: a liberdade da força de trabalho esbarra nas fronteiras, algumas
delas fortemente armadas.
Esses refugiados que perderam a nacionalidade na sua fuga permanente são na verdade
uma espécie de vanguarda do
novo tempo, pois perderem sua
nacionalidade (que é do mesmo
tronco do verbo nascer) e com
isso também algumas de suas
prerrogativas humanas.
Todos nós nos interessamos
pelas ditaduras no continente.
Mas a grande oportunidade
que a ONU tinha era a de estabelecer este vínculo entre a humanidade em movimento e os
50 anos de Declaração. Seria
um vínculo que não nasceria
das manchetes dos jornais, mas
acertaria em cheio numa das
maiores contradições do mundo globalizado.
A Declaração dos Direitos Humanos ao longo desses 50 anos
tem sido para os países o que as
promessas do réveillon são para
o indivíduo. Não se espera que
sejam cumpridas integralmente, funcionam apenas como
uma referência , da qual tentamos sempre nos aproximar.
Uma das questões que ainda
nos separam dos outros países é
que eles nos dão prêmios por esforços no campo de direitos humanos. Ao concederam os prêmios, se instalam também na
posição de que gratificam e punem os bons e maus intérpretes
da Declaração.
Sonho com o dia em que o
Brasil perca sua posição defensiva no campo dos direitos humanos e comece a questionar
também o comportamento dos
outros. Na área ambiental demos um passo importante sediando a conferência de 92.
Deixamos de ser apenas vilões e
compreendemos a responsabilidade dos países do Norte.
Nesse momento, além de receber prêmio por seus esforços, o
Brasil poderia estar pedindo
aos Estados Unidos que revelassem seus documentos secretos
sobre as ditaduras no continente. Ou propondo uma conferência internacional sobre refugiados e imigrantes.
Da política doméstica de direitos humanos, tenho esperança de que vamos avançar para
uma visão global do problema.
Um grande país como o nosso
poderia questionar a política
européia e norte-americana em
relação aos imigrantes. Poderíamos, por exemplo, ter dado
um prêmio à Alemanha por sua
nova política em relação aos estrangeiros.
Tudo bem, o ano terminou
com Pinochet preso. Acertamos
algumas contas com o passado.
Quando vamos acertar as contas com o presente?
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