São Paulo, segunda, 14 de dezembro de 1998

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O outono do general aos 50 anos dos Direitos Humanos

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Outro dia, um repórter de rádio perguntou a um entrevistado quais foram os fatos políticos mais importantes do ano. Achei estranha a pergunta, mas me dei logo conta de que o ano estava acabando e que, nesta época, se fazem mesmo essas perguntas.
O general Pinochet e a comemoração dos 50 anos da Declaração dos Direitos Humanos vieram à minha cabeça.
A prisão do general, no momento em que damos o balanço de meio século, acabou se tornando o fato de maior repercussão num mundo onde os problemas continuam voando como as pedras na Palestina e os dólares vagabundos nas aplicações mundiais.
Todas as revistas do mundo, reconhecendo que há muito a fazer, acabaram apresentando um saldo positivo no campo dos direitos humanos. No Brasil, com José Gregori recebendo o prêmio da ONU, temos também o que comemorar.
Pessoalmente me alegra vê-lo se destacar nesse campo, pois há quase duas décadas participamos juntos da fundação da Comissão Teotônio Vilela, que tinha vários intelectuais de São Paulo e Helio Pelegrino e eu vindos do Rio. Gregori era combativo e moderado, características que o fazem adequado a esta delicada função de governo. Pena é que talvez por sua origem católica não tenha dado a ênfase necessária aos direitos dos homossexuais nos documentos que orientam a posição do governo nesse campo. Os assassinatos prosseguem num ritmo cadenciado.
A prisão de Pinochet, que aconteceu meio espontaneamente, acabou sendo o ponto decisivo das comemorações. Funcionou como uma espécie de gancho para que a mídia e grupos de direitos humanos bombardeassem as ditaduras militares e seus crimes.
Se, no entanto, houvesse uma discussão mais ampla, talvez o centro dessas reflexões tivesse se deslocado, pois a análise da conjuntura num mundo globalizado aponta para outros problemas graves. O principal deles é o da imigração num mundo globalizado. Mercadorias e dinheiro circulam com facilidades, ao passo que as pessoas são cada vez mais pressionadas a não tentarem vender onde queiram sua força de trabalho.
Uma boa parte da humanidade está em trânsito, fugindo de guerras localizadas, choques tribais, catástrofes ecológicas ou mesmo o desemprego irremediável de economias em frangalhos. Em trânsito ou escondida por trás de trabalhos clandestinos, esta parte da humanidade deveria ser objeto de uma reflexão.
Ela coloca em dúvida as promessas do capitalismo que suplantou a economia feudal: a liberdade da força de trabalho esbarra nas fronteiras, algumas delas fortemente armadas.
Esses refugiados que perderam a nacionalidade na sua fuga permanente são na verdade uma espécie de vanguarda do novo tempo, pois perderem sua nacionalidade (que é do mesmo tronco do verbo nascer) e com isso também algumas de suas prerrogativas humanas.
Todos nós nos interessamos pelas ditaduras no continente.
Mas a grande oportunidade que a ONU tinha era a de estabelecer este vínculo entre a humanidade em movimento e os 50 anos de Declaração. Seria um vínculo que não nasceria das manchetes dos jornais, mas acertaria em cheio numa das maiores contradições do mundo globalizado.
A Declaração dos Direitos Humanos ao longo desses 50 anos tem sido para os países o que as promessas do réveillon são para o indivíduo. Não se espera que sejam cumpridas integralmente, funcionam apenas como uma referência , da qual tentamos sempre nos aproximar.
Uma das questões que ainda nos separam dos outros países é que eles nos dão prêmios por esforços no campo de direitos humanos. Ao concederam os prêmios, se instalam também na posição de que gratificam e punem os bons e maus intérpretes da Declaração.
Sonho com o dia em que o Brasil perca sua posição defensiva no campo dos direitos humanos e comece a questionar também o comportamento dos outros. Na área ambiental demos um passo importante sediando a conferência de 92. Deixamos de ser apenas vilões e compreendemos a responsabilidade dos países do Norte.
Nesse momento, além de receber prêmio por seus esforços, o Brasil poderia estar pedindo aos Estados Unidos que revelassem seus documentos secretos sobre as ditaduras no continente. Ou propondo uma conferência internacional sobre refugiados e imigrantes.
Da política doméstica de direitos humanos, tenho esperança de que vamos avançar para uma visão global do problema. Um grande país como o nosso poderia questionar a política européia e norte-americana em relação aos imigrantes. Poderíamos, por exemplo, ter dado um prêmio à Alemanha por sua nova política em relação aos estrangeiros.
Tudo bem, o ano terminou com Pinochet preso. Acertamos algumas contas com o passado. Quando vamos acertar as contas com o presente?



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