São Paulo, quinta, 15 de janeiro de 1998.



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CRÍTICA
Ironia é propulsora do CD

da Reportagem Local

A releitura de Noel Rosa por Johnny Alf é pontuada por um conjunto de demonstrações de ironia mais que convenientes para um artista sempre despreocupado com os ditames da música como indústria.
A mais divertida delas aparece em "Não Tem Tradução". Chico Buarque, em dueto, canta: "E esse negócio de 'alô', 'alô, boy', 'alô, Johnny'/ Só pode ser conversa de telefone".
Bem, fala isso justamente para Johnny, um dos responsáveis pela introdução irreversível dos saberes estrangeiros no samba -aquilo que a letra de Noel criticava.
A ironia é esta: trata-se da única faixa em que Alf se permite improvisações jazzísticas. Num esgar sarcástico, define Noel como pré-bossanovista -não é esse o rótulo eterno de Alf? Pois é, Noel curva-se ao samba-jazz. Mas não se pense que o rebelde resolveu desrespeitar o espírito do fundador.
Não. Em geral, é Alf quem se curva, devolvendo o sublime a canções como "Com Que Roupa?", de que o desgaste de intermináveis regravações parecia já ter afastado a possibilidade da novidade.
Como ele o faz? Tornando Noel fonte de excelência de interpretação, somente. Em sua voz grave e despojada, revela-se, aos 68, o que seu fã Tim Maia seria se fosse rigoroso: intérprete em contínua evolução, cioso em cada nota da seriedade do ato de interpretar.
Em "Gago Apaixonado", despe do anedótico a gagueira do narrador -gagueja desapaixonado, como não gaguejasse. Diz "esto-tou fi-fi-ficando gago" repetindo as repetições de sílabas, mas -surpresa-, ao pronunciar "gago", fica rouco, não gago. Gênio.
Ora canta a fossa da bossa ("Último Desejo") como fosse extrair o sofrimento da alma -cilada em que não poucos intérpretes costumam cair-, mas escapa pela minúcia ao distanciamento, à sabedoria de não usar a alma em vão.
Outrora derrama grandeza na música popular, cantando "X do Problema" como ela é, no feminino. Ignora a violência de homens e mulheres mudarem os gêneros das canções para adaptá-las a seus sexos; dá-se então a ironia de um vozeirão daquele tamanho cantar "já fui convidada para ser estrela do nosso cinema". Gênio.
Por seu turno, os arranjos de Leandro Braga disparam no irreparável quando se fazem brejeiros -"Palpite Infeliz", "Gago Apaixonado"-, pontes matreiras entre Noel e Pixinguinha, mas caem na padronização se o assunto é fossa.
Aí, pouco restaria, se Alf não soubesse proferir como profere versos desconcertantes ("luto preto é vaidade"), impermeáveis à compreensão imediata, como são os de Noel. Pena que sejam tão esparsas as gravações de Johnny Alf. (PAS)

Disco: Letra & Música Noel Rosa Artistas: Johnny Alf & Leandro Braga Lançamento: Lumiar Quanto: R$ 18, em média


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