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LIVRO - LANÇAMENTOS
"Lúcia" joga com o romantismo e o romântico
MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha
No ramo da criação literária, o autor é um ditadorzinho que cria seus
pequenos gulags
para aprisionar e
exterminar regras, personagens e
influências. Haverá ordem cronológica no livro? Serão feitas experiências de linguagem? Parecerá
um grande épico ou serão prioritárias as deduções tiradas do inconsciente?
Será uma tragédia ou uma comédia (Aristóteles caracterizou
os dois gêneros)? Será um drama
ou um melodrama (Eric Bentley
discriminou-os)? Será uma viagem ao conhecido ou um debruço
sobre o desconhecido (Machado
de Assis dizia que um autor sempre escreve sobre ele mesmo)?
Mas existem a tragicomédia, o
épico simbólico ("Grande Sertão:
Veredas"), o autor que faz da viagem interior um épico (Proust) e
o autor que é sem ser (Gustav
Flaubert era espada e Bovary concomitantemente). Literatura é
quase não-teorizável.
Literatura é o tema subliminar
do romance "Lúcia", do carioca
Gustavo Bernardo Krause, 44,
professor de literatura da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Trata-se de um romance de estréia; ele já fez incursões pela poesia ("Pálpebra", 1975), pelo ensaio
("Redação Inquieta", 1985, "Educação pelo Argumento", 1999) e
escreveu livros infanto-juvenis
("Pedro Pedra", 1982, "Menina",
1989, e "A Alma do Urso", 1999).
O narrador é Paulo Rocha, 27,
também professor universitário,
cuja maior aventura é fazer com
que seus alunos entendam o que
ele diz. No seu passado, havia o
xadrez, jogo milenar ensinado pelo pai, que tentara fazer do filho
um campeão. No presente, a gramática é uma obsessão. Enquanto
o narrador abomina as exceções
às regras da gramática, ele lembra
que as regras do xadrez não mudam desde o século 15.
O jovem professor aproveita
suas aulas para expor os conflitos
de mitos gregos que, na verdade,
traduzem seus conflitos pessoais.
Cita o labirinto inventado por Dédalo para cercar "o perigo mortal
que ronda o homem, quando este
se arrisca a enfrentar o animal
dentro de si mesmo".
O romance é ambientado no
Rio de Janeiro dos anos 50. A norma culta rege o estilo: "irritei-me
sobremaneira"; "foi deveras emocionante". Tudo era muito normal na vida não-literária de Paulo, até o encontro casual com Lúcia, em 1955, na Glória.
Espera lá. Ele já a encontrara antes, num ponto de ônibus. Só que
a Lúcia de agora é uma negra de
olhos claros e a de antes uma loira
de olhos escuros. A de antes era
uma menina e a de depois, instigou seu mentor, José de Alencar,
homônimo do autor de "Lucíola",
uma mulher feita, lasciva.
Paulo deita-se com a morena,
que come seus homens como
uma aranha desesperada. A loira
vira sua aluna, é romântica, escreve bilhetes dúbios ("Meu querido,
por que me queimo tanto?"). No
próximo encontro de Paulo com a
morena, ele acende um fósforo
em sua cara e escuta: "Eu não fumo". Paulo acreditava que as duas
eram uma só.
"Com o gesto, que presumia
original e espontâneo, fruto de
um insight criativo, lampejo de
poeta e amante, pretendia aludir
ao bilhete presumido de Lúcia, à
pequena e incendiária frase: "Meu
querido, por que me queimo tanto?"."
O autor debocha de seu narrador, que segue um código medieval do amor cortês, que dita, num
dos artigos, "não convém amar
aquela que se teria vergonha de
desejar em casamento". A Lúcia
morena é sexual, adúltera, enquanto a loira é carinhosa, doce.
Os opostos se colidem e paga-se
um preço doloroso pela síntese.
Como numa trama de Nelson Rodrigues, um personagem romântico, que poderia ter saído de José
de Alencar, enfrenta o adultério, o
incesto, a esquizofrenia, um suicídio. É um homem comum atropelado pelas incoerências e extremos, escravo do labirinto de Dédalo. Krause sabe onde pisa. Trilhou o caminho de um romance
instigante, poético, divertido e
bem escrito.
Avaliação:
Livro: Lúcia
Autor: Gustavo Bernardo Krause
Editora: Relume Dumará
Quanto: R$ 20 (188 págs.)
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