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"ESTUDOS DE INTERIORES..."/ "CALIGRAFIAS"/CONTO
Autoras fundem realidade e ficção
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
A menina do conto "Venite
Adoremus" adverte, sem saber o motivo, que mulher não pode pegar em hóstia, o corpo de
Cristo. Anos depois ela está ajudando a mãe a fazer pão quando
menstrua pela primeira vez. A
massa azeda, crê a menina, por
sua culpa. Ela compreende por
que "mulher não podia pegar o
corpo de Nosso Senhor, porque
senão azedava o corpo de Nosso
Senhor".
A situação ilustra bem um dos
motivos centrais das histórias de
"Estudos de Interiores para uma
Arquitetura da Solidão", da bissexta Cecília Prada: a condição
marginal da mulher no patriarcado cristão. O temor ao pecado, a
realidade sorvida como se através
de uma porta entreaberta e a idéia
do sacrifício emanam daí.
Em "Procissão", uma garotinha
não agüenta o percurso do préstito natalino e vomita, enquanto,
em sua cabeça, "espinhos de latão
se cravavam um a um - por causa de seus pecados". Em "Estudos...", é a mulher quem se vê
martirizada, à semelhança de
Cristo, invertendo os papéis prescritos pela sociedade.
Embora apresente ligeiras falhas, o livro de Prada tem textos
excepcionais, como os contos citados, por exemplo, e "La Pietà",
em que o vandalismo contra a famosa estátua de Michelângelo
serve de contraponto às sevícias
sofridas por uma favelada.
As coletâneas de Prada vêm a
lume a cada 20 e tantos anos
("Ponto Morto", 1955, e "O Caos
na Sala de Jantar", 1978), mas alguns de seus contos foram lançados, nos intervalos, em antologias
brasileiras e estrangeiras. A autora atribui a demora à sua própria
exigência artística e a um patrulhamento de que teria sido vítima.
A patrulha se deveria a uma reportagem da década de 1970, ganhadora do Prêmio Esso, em que
ela denunciava abusos de uma clínica psiquiátrica infantil. O problema é que os diretores dessa
instituição eram ligados a setores
benquistos da "intelligentsia".
Interessante notar que a autora,
tal como suas personagens, é
martirizada publicamente pela
devoção a uma verdade recôndita, que os donos da razão preferem não enxergar. Ou como diz o
narrador de "A Clínica ao Lado":
"A realidade tinha dois lados".
A imbricação entre realidade e
ficção também pode ser vista em
"Caligrafias", microcontos de
Adriana Lisboa. Poderíamos chamá-los de esboços, não fosse o rigor que marca a escrita da autora
(ganhadora do Prêmio José Saramago). Muitos desses "instantes"
parecem saltar, como crônicas, de
sua experiência pessoal, como o
encontro com a escritora portuguesa Filipa Melo ou a redescoberta de Brasília.
Lisboa não precisa muito para
urdir sua teia. Às vezes é a simples
observação de umas plantas de
jardim; às vezes, a visão de uma
pedra porosa. No fundo, ela parece estar celebrando o mistério que
nos mantém vivos.
Como em Prada, há a descrição
de uma casa de infância ("Quintais"). Mas, enquanto a casa de
Prada é quase um ser vivo, que
persegue, oprime e assombra, a
casa de Lisboa (de seu avô) é um
quadro de recordações amenas,
que lhe serve "se não como guia,
ao menos como amuleto". O que
em Prada é assombração, em Lisboa é deslumbramento.
Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão
Autora: Cecília Prada
Editora: DBA
Quanto: R$ 31 (200 págs.)
Caligrafias
Autora: Adriana Lisboa
Editora: Rocco
Quanto: R$ 18,50 (92 págs.)
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