São Paulo, sábado, 15 de janeiro de 2005

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"ESTUDOS DE INTERIORES..."/ "CALIGRAFIAS"/CONTO

Autoras fundem realidade e ficção

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

A menina do conto "Venite Adoremus" adverte, sem saber o motivo, que mulher não pode pegar em hóstia, o corpo de Cristo. Anos depois ela está ajudando a mãe a fazer pão quando menstrua pela primeira vez. A massa azeda, crê a menina, por sua culpa. Ela compreende por que "mulher não podia pegar o corpo de Nosso Senhor, porque senão azedava o corpo de Nosso Senhor".
A situação ilustra bem um dos motivos centrais das histórias de "Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão", da bissexta Cecília Prada: a condição marginal da mulher no patriarcado cristão. O temor ao pecado, a realidade sorvida como se através de uma porta entreaberta e a idéia do sacrifício emanam daí.
Em "Procissão", uma garotinha não agüenta o percurso do préstito natalino e vomita, enquanto, em sua cabeça, "espinhos de latão se cravavam um a um - por causa de seus pecados". Em "Estudos...", é a mulher quem se vê martirizada, à semelhança de Cristo, invertendo os papéis prescritos pela sociedade.
Embora apresente ligeiras falhas, o livro de Prada tem textos excepcionais, como os contos citados, por exemplo, e "La Pietà", em que o vandalismo contra a famosa estátua de Michelângelo serve de contraponto às sevícias sofridas por uma favelada.
As coletâneas de Prada vêm a lume a cada 20 e tantos anos ("Ponto Morto", 1955, e "O Caos na Sala de Jantar", 1978), mas alguns de seus contos foram lançados, nos intervalos, em antologias brasileiras e estrangeiras. A autora atribui a demora à sua própria exigência artística e a um patrulhamento de que teria sido vítima.
A patrulha se deveria a uma reportagem da década de 1970, ganhadora do Prêmio Esso, em que ela denunciava abusos de uma clínica psiquiátrica infantil. O problema é que os diretores dessa instituição eram ligados a setores benquistos da "intelligentsia".
Interessante notar que a autora, tal como suas personagens, é martirizada publicamente pela devoção a uma verdade recôndita, que os donos da razão preferem não enxergar. Ou como diz o narrador de "A Clínica ao Lado": "A realidade tinha dois lados".
A imbricação entre realidade e ficção também pode ser vista em "Caligrafias", microcontos de Adriana Lisboa. Poderíamos chamá-los de esboços, não fosse o rigor que marca a escrita da autora (ganhadora do Prêmio José Saramago). Muitos desses "instantes" parecem saltar, como crônicas, de sua experiência pessoal, como o encontro com a escritora portuguesa Filipa Melo ou a redescoberta de Brasília.
Lisboa não precisa muito para urdir sua teia. Às vezes é a simples observação de umas plantas de jardim; às vezes, a visão de uma pedra porosa. No fundo, ela parece estar celebrando o mistério que nos mantém vivos.
Como em Prada, há a descrição de uma casa de infância ("Quintais"). Mas, enquanto a casa de Prada é quase um ser vivo, que persegue, oprime e assombra, a casa de Lisboa (de seu avô) é um quadro de recordações amenas, que lhe serve "se não como guia, ao menos como amuleto". O que em Prada é assombração, em Lisboa é deslumbramento.


Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão
    
Autora: Cecília Prada
Editora: DBA
Quanto: R$ 31 (200 págs.)

Caligrafias
   
Autora: Adriana Lisboa
Editora: Rocco
Quanto: R$ 18,50 (92 págs.)


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