São Paulo, sábado, 15 de janeiro de 2005

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ARTIGO

Europa vê nos EUA o reflexo de sua juventude

JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O mundo detesta a América. A Europa também. Ou sobretudo. Pior: a Europa se comporta como uma velha senhora de pele caída que ainda gosta de levantar o dedo para pedir boas maneiras a meninos malcomportados. Não, o problema não é Bush. E não, o problema não é a reeleição de Bush e sua folha de serviço no Iraque. O problema são os americanos. Os valores dos americanos. Porque os americanos têm valores que o mundo, e a Europa, não tolera nem compreende. O individualismo americano. A religião americana. O tom moral com que tudo é dito e redito, feito e desfeito.
Um erro. Eis a tese radical de Gertrude Himmelfarb em "The Roads to Modernity: The British, French, and American Enlightenments" (Alfred A. Knopf; 284 págs.), o melhor livro do ano e o melhor livro de Himmelfarb, primus inter pares dos historiadores americanos e especialista imbatível nas guerras culturais, recentes ou remotas.
Para Himmelfarb, os Estados Unidos, seus valores e crenças, virtudes e defeitos, são uma herança européia, uma herança do iluminismo britânico do século 18 que acabou por florescer e continuar do outro lado do Atlântico.
Mas calma. O que entendemos nós por iluminismo? Kant responde: uma forma de ser humano sair de sua menoridade. Mas a resposta de Kant não vale: há várias formas de emancipação cultural. Se consultarmos os livros clássicos, iluminismo só existe um. Coisa francesa. Coisa de franceses. Vocês conhecem o grupo: Voltaire, Condorcet. O delicioso Diderot. E Montesquieu, que não joga sempre da mesma forma. E guilhotinas, Robespierre, filmes de terror.
Iluminismo e França passaram a ser um só. Iluminismo e revolução, dois amantes na mesma cama: uma cama de sangue e violência, que abriria caminho para Napoleão, um dos mais baixos homens da história a conquistar o maior pedaço de território.
Não para Himmelfarb. Não existe um iluminismo. Não existem dois. Existem, pelo menos, três: o britânico, o americano e o francês. Claro que apresentam semelhanças em suas propostas de "modernidade"; igual respeito pela razão, ciência, justiça ou liberdade. Mas convém não confundir as coisas. O iluminismo francês se define por uma paixão pela razão como forma de transformação social. O século 17 foi um "must": avanços nas ciências naturais, descobertas de todo tipo, a maçã de Newton na cabeça de Newton.
No século seguinte, a pergunta inevitável: e se a razão encontrar o caminho salvífico para os assuntos humanos? O homem não é parte da natureza? Dito e feito. Para Himmelfarb, o iluminismo francês parte deste pressuposto: é possível aplicar a teoria à prática, transformando os homens e a natureza humana.
O iluminismo americano segue na lista. O problema dos colonos americanos lidou com a liberdade, não com as potencialidades puras da razão pura. Como formar uma nação livre e feliz, perguntaram os pais fundadores. E responderam com "The Federalist", os 85 artigos de Hamilton, Madison e John Jay que ainda hoje são referência do edifício constitucional dos Estados Unidos.
Mas é sobretudo o iluminismo britânico que ocupa a atenção de Himmelfarb. Porque foi o iluminismo britânico que forjou a América de hoje, com seus valores, preceitos e preconceitos. Não um iluminismo de filósofos como Condorcet, para quem a felicidade era um cálculo. Os ingleses não tiveram "philosophes" no sentido francês; tiveram "filósofos morais" como Adam Smith ou David Hume. E a preocupação foi repetidamente a mesma: afirmar a natureza humana como geradora de verdades humanas.
Para os "filósofos morais", existe um sentido moral em todos os homens um sentido comum, universal, que se manifesta em simpatia, benevolência e compaixão pelos outros. E, dado fundamental, nenhuma guerra entre razão e religião, ao contrário dos franceses. A razão escolhe o caminho. A religião, quando muito, reforça o caminho escolhido.
A obra de Himmelfarb chegou na altura certa. Dizem que Bush ganhou a última eleição com "valores morais": a moralidade americana bateu aos pontos a guerra, a economia e o terror. Fato. Mas a América é uma nação moral toda ela, da esquerda à direita -e o mundo saberia disso se consultasse os livros de história e revisitasse o iluminismo britânico.
A idéia de virtude moral, que tanto arrepia os europeus, já fez parte do cartão identitário da Europa. Encontra-se hoje nos Estados Unidos: numa sociedade civil fortalecida, num Estado que se deseja mínimo e no sentimento de compaixão, ou de "paixão pela compaixão", como disse Hannah Arendt, disseminado em pequenos grupos ou comunidades.
Os Estados Unidos se comportam como donos do mundo? Talvez. Mas os Estados Unidos são filhos da Europa. De uma certa Europa. No fundo, talvez seja isso que incomode os europeus: eles olham para a América de hoje e conseguem ver o rosto jovem que tiveram um dia.
Freud, como sempre, explica.


João Pereira Coutinho é colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online


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