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ARTIGO
Europa vê nos EUA o reflexo de sua juventude
JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O mundo detesta a América.
A Europa também. Ou sobretudo. Pior: a Europa se comporta como uma velha senhora de
pele caída que ainda gosta de levantar o dedo para pedir boas
maneiras a meninos malcomportados. Não, o problema não é
Bush. E não, o problema não é a
reeleição de Bush e sua folha de
serviço no Iraque. O problema
são os americanos. Os valores dos
americanos. Porque os americanos têm valores que o mundo, e a
Europa, não tolera nem compreende. O individualismo americano. A religião americana. O
tom moral com que tudo é dito e
redito, feito e desfeito.
Um erro. Eis a tese radical de
Gertrude Himmelfarb em "The
Roads to Modernity: The British,
French, and American Enlightenments" (Alfred A. Knopf; 284
págs.), o melhor livro do ano e o
melhor livro de Himmelfarb, primus inter pares dos historiadores
americanos e especialista imbatível nas guerras culturais, recentes
ou remotas.
Para Himmelfarb, os Estados
Unidos, seus valores e crenças,
virtudes e defeitos, são uma herança européia, uma herança do
iluminismo britânico do século 18
que acabou por florescer e continuar do outro lado do Atlântico.
Mas calma. O que entendemos
nós por iluminismo? Kant responde: uma forma de ser humano
sair de sua menoridade. Mas a
resposta de Kant não vale: há várias formas de emancipação cultural. Se consultarmos os livros
clássicos, iluminismo só existe
um. Coisa francesa. Coisa de franceses. Vocês conhecem o grupo:
Voltaire, Condorcet. O delicioso
Diderot. E Montesquieu, que não
joga sempre da mesma forma. E
guilhotinas, Robespierre, filmes
de terror.
Iluminismo e França passaram
a ser um só. Iluminismo e revolução, dois amantes na mesma cama: uma cama de sangue e violência, que abriria caminho para Napoleão, um dos mais baixos homens da história a conquistar o
maior pedaço de território.
Não para Himmelfarb. Não
existe um iluminismo. Não existem dois. Existem, pelo menos,
três: o britânico, o americano e o
francês. Claro que apresentam semelhanças em suas propostas de
"modernidade"; igual respeito
pela razão, ciência, justiça ou liberdade. Mas convém não confundir as coisas. O iluminismo
francês se define por uma paixão
pela razão como forma de transformação social. O século 17 foi
um "must": avanços nas ciências
naturais, descobertas de todo tipo, a maçã de Newton na cabeça
de Newton.
No século seguinte, a pergunta
inevitável: e se a razão encontrar o
caminho salvífico para os assuntos humanos? O homem não é
parte da natureza? Dito e feito. Para Himmelfarb, o iluminismo
francês parte deste pressuposto: é
possível aplicar a teoria à prática,
transformando os homens e a natureza humana.
O iluminismo americano segue
na lista. O problema dos colonos
americanos lidou com a liberdade, não com as potencialidades
puras da razão pura. Como formar uma nação livre e feliz, perguntaram os pais fundadores. E
responderam com "The Federalist", os 85 artigos de Hamilton,
Madison e John Jay que ainda hoje são referência do edifício constitucional dos Estados Unidos.
Mas é sobretudo o iluminismo
britânico que ocupa a atenção de
Himmelfarb. Porque foi o iluminismo britânico que forjou a
América de hoje, com seus valores, preceitos e preconceitos. Não
um iluminismo de filósofos como
Condorcet, para quem a felicidade era um cálculo. Os ingleses não
tiveram "philosophes" no sentido
francês; tiveram "filósofos morais" como Adam Smith ou David
Hume. E a preocupação foi repetidamente a mesma: afirmar a natureza humana como geradora de
verdades humanas.
Para os "filósofos morais", existe um sentido moral em todos os
homens um sentido comum, universal, que se manifesta em simpatia, benevolência e compaixão
pelos outros. E, dado fundamental, nenhuma guerra entre razão e
religião, ao contrário dos franceses. A razão escolhe o caminho. A
religião, quando muito, reforça o
caminho escolhido.
A obra de Himmelfarb chegou
na altura certa. Dizem que Bush
ganhou a última eleição com "valores morais": a moralidade americana bateu aos pontos a guerra,
a economia e o terror. Fato. Mas a
América é uma nação moral toda
ela, da esquerda à direita -e o
mundo saberia disso se consultasse os livros de história e revisitasse
o iluminismo britânico.
A idéia de virtude moral, que
tanto arrepia os europeus, já fez
parte do cartão identitário da Europa. Encontra-se hoje nos Estados Unidos: numa sociedade civil
fortalecida, num Estado que se
deseja mínimo e no sentimento
de compaixão, ou de "paixão pela
compaixão", como disse Hannah
Arendt, disseminado em pequenos grupos ou comunidades.
Os Estados Unidos se comportam como donos do mundo? Talvez. Mas os Estados Unidos são filhos da Europa. De uma certa Europa. No fundo, talvez seja isso
que incomode os europeus: eles
olham para a América de hoje e
conseguem ver o rosto jovem que
tiveram um dia.
Freud, como sempre, explica.
João Pereira Coutinho é colunista do
jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online
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