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CONTARDO CALLIGARIS
Bigode de madame salva africano morrendo de sono
Na sexta-feira passada,
o "The New York Times"
publicou uma notícia tragicômica. A reportagem explicava como
os bigodes das mulheres de classe
média salvarão 300 mil negros
africanos por ano. Explico.
A doença do sono é produzida
por um parasita introduzido no
sangue pela picada da mosca tsé-tsé: quando o bicho chega ao cérebro, o sujeito entra em coma. A
doença voltou a ser endêmica na
África Central, onde a mosca
prospera entre guerras, fome,
Aids etc. Segundo os Médicos
Sem-Fronteiras, há 300 mil contaminados por ano.
Por sorte, no fim dos anos 70, foi
descoberta a eflornitina, que cura
até os pacientes já comatosos.
Mas os negros africanos, com sua
baixa expectativa de vida, suas
doenças sexualmente transmissíveis e suas carteiras vazias, não
são os clientes ideais da indústria
farmacêutica. Acabou a esperança de que a eflornitina funcionasse também contra algum tipo de
câncer -o que tornaria sua preparação rentável. A produtora
decidiu parar a fabricação.
E os africanos? Pois é, problema
deles. Não vale a pena produzir
para um mercado pequeno e pobre. Nessa altura, um milagre: Gillette e Bristol-Myers Squibb lançam um novo produto para a remoção dos pêlos faciais: o creme
Vaniqa, a base de eflornitina. A
produção continuará.
Um encarte da "Cosmopolitan"
de janeiro anuncia que, se algum
bigode tiver que se intrometer entre duas bocas (de sexo diferente)
que se beijam, melhor que seja o
do homem. Graças aos milhões de
mulheres que pagarão R$ 100 por
um tubo de creme que dura um
mês, 300 mil africanos a cada ano
voltarão para a vida.
Não é uma prova da sabedoria
da economia globalizada? Deve
ser. Mas é penoso pensar que, se
os bigodes femininos não fossem
sensíveis à eflornitina, os africanos já estariam adormecendo para sempre.
Fiquei indignado, querendo a
nacionalização das indústrias
farmacêuticas: como podemos
deixar que a saúde pública seja
subordinada a lucros particulares?
Mas, se um gesto de vareta mágica abolisse a globalização e voltássemos para um mundo de indústrias nacionais, os africanos
não teriam a menor chance
-pois seus países não dispõem
dos recursos necessários para descobrir ou produzir remédio nenhum. Mais desconcertante ainda: para os sujeitos da cultura
ocidental moderna (ou seja, para
nós), o maior incentivo é o interesse particular. O triunfo dos interesses privados sobre a solidariedade social é um corolário de
nossa cultura que nunca conseguimos mudar por decreto. Por
exemplo, se você estivesse doente
à espera de que inventassem uma
cura salvadora, gostaria que a
pesquisa estivesse só nas mãos de
agências públicas? Certo que não.
Sonhamos com a solidariedade,
mas, para obtermos resultados,
contamos com a motivação do
apetite de ganho.
Acalma-se um pouco a indignação. Não nacionalizaremos a indústria farmacêutica. Esperando
uma mudança de cultura, fazer o
quê? Console-se: o cinismo deste
mundo organizado pelo jogo dos
interesses particulares tem uma
falha pela qual se insinuam sentimentos solidários. Veja só: não é
um acidente que logo um creme
contra os bigodes das madames
salve 300 mil africanos. Entre os
remédios mais vendidos e rentáveis há o Viagra, o Propécia, contra a careca, a coorte dos antidepressivos etc. Os fármacos que
cuidam de nossa performance social são os mesmos que sustentam
a indústria farmacêutica. Estamos sempre dispostos a gastar para o sorriso, a cabeleira, a ereção
poderosa e agora o lábio glabro.
Não é por vaidade. Cultuamos as
aparências porque são cruciais:
elas decidem nossa posição no
mundo, nosso sucesso ou fracasso:
triste e peluda para baixo, sociável e depilada para cima.
Mas esse culto das aparências
nos torna vulneráveis: nosso cinismo não resiste à aparência da
dor. É suficiente lembrar o espectro das vítimas da tsé-tsé para
que produzir eflornitina se torne
uma exigência moral. As madames exibirão seus lábios glabros
em campanhas para angariar
fundos contra a mosca e seu parasita.
Somos constituídos pelas aparências, por isso as aparências nos
afetam. Nosso cinismo redime-se
por ser hipersensível às primeiras
páginas. É por isso que a ajuda às
vítimas é a grande especialidade
ética de nossa cultura. Não sabemos decidir o que é justo e o que é
errado. Perseguimos sempre nossos interesses particulares, mas
reagimos à visão de feridas abertas. Dito de maneira mais incômoda e mais próxima: só queremos arrasar, mas somos voluntários para ajudar as crianças de
rua e abrigar os mendigos. Nosso
senso moral é como nossas vidas:
cosmético. Bom, melhor do que
nada.
PS: O novo presidente americano, apresentando-se como um
"conservador compassivo", talvez
tenha definido um traço dominante da personalidade ocidental
moderna. Talvez tenha achado
também uma maneira aceitável
de confessar que somos, geralmente, cínicos e mídia-sensíveis.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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