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São Paulo, sábado, 15 de março de 2003

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WALTER SALLES

A moagem do tempo em "As Horas"

O ano de 1566 foi estranho: começou em 14 de abril e terminou em 31 de dezembro. Teve apenas oito meses e 17 dias. Até então, o início do ano coincidia com a Páscoa. Mais ou menos como o calendário não oficial brasileiro, que só começa depois de a Luiza Brunet sacolejar na avenida.
Foi outro membro da realeza, o francês Carlos 9º, quem alterou o calendário que existia até o século 16. O sétimo mês, setembro, virou o nono mês do ano. Novembro, o décimo-primeiro, e assim por diante. O calendário romano, que estabelecia que o ano começava em março, ficou de pernas para o ar, e assim permaneceu até hoje.
A coisa não parou por aí. Uma bula papal estabelecida por Gregório 13 continuou mexendo com o contar do tempo. Cortou dez dias do ano de 1852. O dia seguinte ao 4 de outubro... foi o dia 15 de outubro, e não 5. Foi uma forma de aproximar o calendário estabelecido pelos homens ao longo dos séculos, do "ano natural" determinado pelo sol.
Não tinha idéia desses dados, até que li um livro do sociólogo Norbert Elias, "Sobre o Tempo", publicado no Brasil pela editora Jorge Zahar. "O conceito de tempo relaciona-se, entre outras coisas, com processos não repetíveis", diz Elias. "Um octogenário nunca mais terá 40 anos. O ano de 1982 não se repetirá. No entanto, a grande maioria dos filósofos não pára de procurar algo de imutável e estável por trás do devir, uma consciência humana do tempo e do espaço que seja sempre igual a si mesma."
Pensei em Elias quando li "As Horas", o livro de Michael Cunningham que deu origem ao filme dirigido pelo inglês Stephen Daldry. Tinha gostado do primeiro livro de Cunningham, "Um Repouso na Extremidade do Mundo", e temi que ele pudesse se esborrachar com o ponto de partida tão delicado que escolheu para "As Horas".
Três mulheres, vivendo em tempos e espaços diferentes, experimentam sentimentos semelhantes de angústia existencial, solidão e depressão. A primeira delas é a escritora Virginia Woolf, no momento em que se debate com a criação de "Mrs. Dalloway". A segunda é uma dona-de-casa que mora -e se aborrece- em Los Angeles nos anos 50. A terceira personagem é uma editora que reside em Nova York, em 2001, e vive dos escombros de um escritor que está morrendo de Aids.
Como é que Cunningham conseguiu se safar dessa, eu não sei. O fato é que ele sucede em mesclar esses três tempos diferentes com delicadeza, subvertendo a noção de tempo linear e fazendo com que eventos vividos em um momento repercutam em outro espaço e outro tempo. Pouco a pouco, a construção matemática do livro se faz esquecer, e afloram os efeitos daquilo que Mário Peixoto chamava de "a moagem do tempo". Cunningham vai nos oferecendo um inventário das nossas fraquezas e de nossas desesperanças, das limitações humanas que se repetem ao longo do tempo.
"As Horas", o filme, também vive desse constante ecoar de um tempo no outro, e do embate entre os impulsos vitais e suicidas de seus personagens. Há quem diga que os personagens na tela são caricatos, a música de Philip Glass reiterativa, a prótese de nariz que Nicole Kidman usa, infeliz. "Filme de arte" feito em Hollywood, para quem detesta filme de arte.
Não concordo inteiramente. Tenho, ao contrário, a impressão de que o filme vale pelo roteiro eloquente do dramaturgo inglês David Hare e por uma atuação especialmente luminosa, a de Julianne Moore, que interpreta a dona-de-casa perdida entre suas obrigações e seus desejos abafados.
Vale, também, por uma qualidade do livro que se transferiu para a película: "As Horas" mostra que a agonia que sentimos não pode, às vezes, ser curada pelo amor ou pela razão. E isso, independentemente do tempo ou espaço em que vivemos. É triste como um velho disco do "The Smiths" ou o campo inglês debaixo da chuva, mas vale a pena conferir.


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