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WALTER SALLES
A moagem do tempo em "As Horas"
O ano de 1566 foi estranho:
começou em 14 de abril e
terminou em 31 de dezembro. Teve apenas oito meses e 17 dias. Até
então, o início do ano coincidia
com a Páscoa. Mais ou menos como o calendário não oficial brasileiro, que só começa depois de a
Luiza Brunet sacolejar na avenida.
Foi outro membro da realeza, o
francês Carlos 9º, quem alterou o
calendário que existia até o século
16. O sétimo mês, setembro, virou
o nono mês do ano. Novembro, o
décimo-primeiro, e assim por
diante. O calendário romano, que
estabelecia que o ano começava
em março, ficou de pernas para o
ar, e assim permaneceu até hoje.
A coisa não parou por aí. Uma
bula papal estabelecida por Gregório 13 continuou mexendo com
o contar do tempo. Cortou dez
dias do ano de 1852. O dia seguinte ao 4 de outubro... foi o dia 15 de
outubro, e não 5. Foi uma forma
de aproximar o calendário estabelecido pelos homens ao longo
dos séculos, do "ano natural" determinado pelo sol.
Não tinha idéia desses dados,
até que li um livro do sociólogo
Norbert Elias, "Sobre o Tempo",
publicado no Brasil pela editora
Jorge Zahar. "O conceito de tempo relaciona-se, entre outras coisas, com processos não repetíveis", diz Elias. "Um octogenário
nunca mais terá 40 anos. O ano
de 1982 não se repetirá. No entanto, a grande maioria dos filósofos
não pára de procurar algo de
imutável e estável por trás do devir, uma consciência humana do
tempo e do espaço que seja sempre igual a si mesma."
Pensei em Elias quando li "As
Horas", o livro de Michael Cunningham que deu origem ao filme
dirigido pelo inglês Stephen
Daldry. Tinha gostado do primeiro livro de Cunningham, "Um Repouso na Extremidade do Mundo", e temi que ele pudesse se esborrachar com o ponto de partida
tão delicado que escolheu para
"As Horas".
Três mulheres, vivendo em tempos e espaços diferentes, experimentam sentimentos semelhantes de angústia existencial, solidão e depressão. A primeira delas
é a escritora Virginia Woolf, no
momento em que se debate com a
criação de "Mrs. Dalloway". A segunda é uma dona-de-casa que
mora -e se aborrece- em Los
Angeles nos anos 50. A terceira
personagem é uma editora que
reside em Nova York, em 2001, e
vive dos escombros de um escritor
que está morrendo de Aids.
Como é que Cunningham conseguiu se safar dessa, eu não sei. O
fato é que ele sucede em mesclar
esses três tempos diferentes com
delicadeza, subvertendo a noção
de tempo linear e fazendo com
que eventos vividos em um momento repercutam em outro espaço e outro tempo. Pouco a pouco, a construção matemática do
livro se faz esquecer, e afloram os
efeitos daquilo que Mário Peixoto
chamava de "a moagem do tempo". Cunningham vai nos oferecendo um inventário das nossas
fraquezas e de nossas desesperanças, das limitações humanas que
se repetem ao longo do tempo.
"As Horas", o filme, também vive desse constante ecoar de um
tempo no outro, e do embate entre os impulsos vitais e suicidas de
seus personagens. Há quem diga
que os personagens na tela são caricatos, a música de Philip Glass
reiterativa, a prótese de nariz que
Nicole Kidman usa, infeliz. "Filme de arte" feito em Hollywood,
para quem detesta filme de arte.
Não concordo inteiramente. Tenho, ao contrário, a impressão de
que o filme vale pelo roteiro eloquente do dramaturgo inglês David Hare e por uma atuação especialmente luminosa, a de Julianne Moore, que interpreta a dona-de-casa perdida entre suas obrigações e seus desejos abafados.
Vale, também, por uma qualidade do livro que se transferiu para a película: "As Horas" mostra
que a agonia que sentimos não
pode, às vezes, ser curada pelo
amor ou pela razão. E isso, independentemente do tempo ou espaço em que vivemos. É triste como um velho disco do "The
Smiths" ou o campo inglês debaixo da chuva, mas vale a pena conferir.
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