São Paulo, quarta-feira, 15 de março de 2006

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MARCELO COELHO

Últimas notícias da América

Quem escreve é o marinheiro Maqroll, lembrando-se de uma mulher: "Flor Estévez, leal e rude em suas iras, atrevida e repentina em suas carícias. Distraída, (...) entoando canções das terras baixas, canções frutadas, prazerosas, inocentes e tingidas de uma nostalgia aguda que ficava para sempre na memória com a melodia e as palavras de uma candura transparente".
Ele continua seu diário: "E eu aqui, subindo este rio com um bêbado metade comanche, metade gringo, um índio mudo apaixonado pelo seu motor a diesel e um nonagenário que parece nascido da casca tumefata de alguma destas árvores gigantescas sem nome nem ofício. Não tem remédio minha errância zonza, sempre a contrapelo, sempre daninha, sempre distante da minha verdadeira vocação".
Este é um trecho de "A Neve do Almirante", novela do colombiano Álvaro Mutis que acaba de ser publicada pela editora Record, na tradução de Luís Carlos Cabral. Há uns 15 anos o mesmo livro havia sido lançado pela Companhia das Letras, na tradução (que prefiro) de Josely Vianna Baptista. Comparem-se algumas frases.
"Flor Estévez, fiel e escandalosa em suas iras, descarada e repentina em suas carícias. (...) Não tem remédio mesmo esse meu vagar desarvorado, sempre pelo avesso, sempre danoso, sempre alheio a minha verdadeira vocação."
Gosto desse "vagar desarvorado", que resume bem o espírito de Maqroll, "o gaveiro", protagonista de vários livros de Álvaro Mutis. Não deixa de ser coerente com as aventuras do marinheiro que traduções alternativas de "A Neve do Almirante" estejam à nossa disposição.
Com efeito, os rumos de Maqroll parecem constantemente dividir-se em opções incertas, fazendo-se e refazendo-se, corrigindo-se, como um texto interminável; ou melhor, como uma tradução em busca do original.
"A Neve do Almirante" é o diário de uma dessas viagens de Maqroll. Ele está numa espécie de "ferryboat", subindo um rio na floresta equatorial; procura o caminho de algumas grandes madeireiras, instaladas por finlandeses nos contrafortes das montanhas, e mantém a vaga esperança de realizar negócios na região.
Não há nenhum elemento de realismo fantástico no livro de Mutis, mas seu clima é francamente irreal. Um casal de índios aparece na margem do rio, pega carona na balsa, e acontece o que se segue.
"Esta noite, enquanto dormia profundamente, invadiu-me de repente um cheiro de limo em decomposição, de serpente no cio, uma inhaca crescente, adocicada, insuportável. Abri os olhos. A índia me olhava fixamente, sorrindo com uma malícia que tinha algo de carnívoro, mas, ao mesmo tempo, era de uma inocência nauseabunda. Pôs a mão no meu sexo e começou a me acariciar. Deitou-se ao meu lado. Ao penetrá-la, senti como se estivesse afundando numa cera insípida que, sem opor resistência, deixava que tudo se fizesse com uma imóvel placidez vegetal."
É a própria selva, o rio, o pântano, o que parece se oferecer a Maqroll, e os efeitos desse conluio se fazem logo sentir: febres, náuseas e "uma inerte demência mineral", provocada por um delírio em torno de chapas de zinco que se encaixam e desencaixam. Como se ele próprio se transformasse "em outra coisa, em um mineral compacto feito de arestas interiores que se multiplicam infinitamente e cujo registro e narração constituem a própria razão de nosso durar no tempo".
Nessa passagem do vegetal -adocicado, insidioso, nauseante- para o mineral -desconjuntado, rangente, infinito- talvez esteja resumida, para Mutis, a idéia de civilização. A aventura fluvial de Maqroll se inspira, por certo, nos relatos de Joseph Con- rad (1857-1924). Mas é como se a história de "O Coração das Trevas" fosse narrada ao contrário. Em vez de se afastar cada vez mais da civilização européia, indo encontrar o horror e a demência na figura de um branco já engolfado pelas forças da selva, Maqroll sobe o rio para livrar-se da natureza tropical, até chegar nas instalações modernas, assépticas, metálicas dos finlandeses.
Claro que seu projeto de enriquecimento -e, aqui, podemos pensar, é de toda a América Latina que se trata- se desfaz numa miragem. Marinheiro erudito e cosmopolita, o gaveiro Maqroll nos havia advertido, desde o começo, sobre seu potencial de desconcerto e de alegoria.
"Na Ordem dos Cavaleiros de Rodes, cujas ruínas se levantam em uma escarpa perto de Trípoli, há um túmulo anônimo que exibe a seguinte inscrição: "Não era aqui". Não há dia em que não medite a respeito dessas palavras. São muito claras e, ao mesmo tempo, encerram todo o mistério que nos é dado suportar."
Resta a Maqroll, depois de presenciar várias mortes, turbilhões, névoas e ameaças, voltar à estalagem andina da "Neve do Almirante", onde deixara sua amante, Flor Estévez. Não conto o final. Apenas é preciso dizer que, nesse barracão meio arruinado, existe um corredor estreito que "levava à varanda dos fundos da casa, sustentada por umas vigas de madeira sobre um precipício semicoberto pelo verde das avencas. Os viajantes iam urinar ali, com minuciosa paciência, sem nunca conseguir ouvir o ruído do líquido se esvaindo na vertigem enevoada e vegetal do despenhadeiro".
Essa varanda talvez seja a gávea terrestre, de onde Maqroll nos reenvia suas mensagens, ao mesmo tempo simples e sibilinas, colhidas do interior da América: "Terra à vista!". Terra à vista? Não, não há terra nenhuma à vista, nenhum destino. Nada é aqui. Mas o gaveiro ainda tem conselhos a dar.
"Segue os navios", diz ele. "Não pára. Evita até o porto mais humilde. Sobe os rios. Desce os rios. Nega toda margem."


@ - coelhofsp@uol.com.br

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