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MARCELO COELHO
Últimas notícias da América
Quem escreve é o marinheiro
Maqroll, lembrando-se de
uma mulher: "Flor Estévez, leal e
rude em suas iras, atrevida e repentina em suas carícias. Distraída, (...) entoando canções das terras baixas, canções frutadas, prazerosas, inocentes e tingidas de
uma nostalgia aguda que ficava
para sempre na memória com a
melodia e as palavras de uma
candura transparente".
Ele continua seu diário: "E eu
aqui, subindo este rio com um bêbado metade comanche, metade
gringo, um índio mudo apaixonado pelo seu motor a diesel e um
nonagenário que parece nascido
da casca tumefata de alguma destas árvores gigantescas sem nome
nem ofício. Não tem remédio minha errância zonza, sempre a
contrapelo, sempre daninha,
sempre distante da minha verdadeira vocação".
Este é um trecho de "A Neve do
Almirante", novela do colombiano Álvaro Mutis que acaba de ser
publicada pela editora Record, na
tradução de Luís Carlos Cabral.
Há uns 15 anos o mesmo livro havia sido lançado pela Companhia
das Letras, na tradução (que prefiro) de Josely Vianna Baptista.
Comparem-se algumas frases.
"Flor Estévez, fiel e escandalosa
em suas iras, descarada e repentina em suas carícias. (...) Não tem
remédio mesmo esse meu vagar
desarvorado, sempre pelo avesso,
sempre danoso, sempre alheio a
minha verdadeira vocação."
Gosto desse "vagar desarvorado", que resume bem o espírito de
Maqroll, "o gaveiro", protagonista de vários livros de Álvaro Mutis. Não deixa de ser coerente com
as aventuras do marinheiro que
traduções alternativas de "A Neve
do Almirante" estejam à nossa
disposição.
Com efeito, os rumos de Maqroll parecem constantemente dividir-se em opções incertas, fazendo-se e refazendo-se, corrigindo-se, como um texto interminável;
ou melhor, como uma tradução
em busca do original.
"A Neve do Almirante" é o diário de uma dessas viagens de Maqroll. Ele está numa espécie de
"ferryboat", subindo um rio na
floresta equatorial; procura o caminho de algumas grandes madeireiras, instaladas por finlandeses nos contrafortes das montanhas, e mantém a vaga esperança
de realizar negócios na região.
Não há nenhum elemento de
realismo fantástico no livro de
Mutis, mas seu clima é francamente irreal. Um casal de índios
aparece na margem do rio, pega
carona na balsa, e acontece o que
se segue.
"Esta noite, enquanto dormia
profundamente, invadiu-me de
repente um cheiro de limo em decomposição, de serpente no cio,
uma inhaca crescente, adocicada,
insuportável. Abri os olhos. A índia me olhava fixamente, sorrindo com uma malícia que tinha algo de carnívoro, mas, ao mesmo
tempo, era de uma inocência
nauseabunda. Pôs a mão no meu
sexo e começou a me acariciar.
Deitou-se ao meu lado. Ao penetrá-la, senti como se estivesse
afundando numa cera insípida
que, sem opor resistência, deixava
que tudo se fizesse com uma imóvel placidez vegetal."
É a própria selva, o rio, o pântano, o que parece se oferecer a Maqroll, e os efeitos desse conluio se
fazem logo sentir: febres, náuseas
e "uma inerte demência mineral", provocada por um delírio
em torno de chapas de zinco que
se encaixam e desencaixam. Como se ele próprio se transformasse
"em outra coisa, em um mineral
compacto feito de arestas interiores que se multiplicam infinitamente e cujo registro e narração
constituem a própria razão de
nosso durar no tempo".
Nessa passagem do vegetal
-adocicado, insidioso, nauseante- para o mineral -desconjuntado, rangente, infinito- talvez esteja resumida, para Mutis, a
idéia de civilização. A aventura
fluvial de Maqroll se inspira, por
certo, nos relatos de Joseph Con-
rad (1857-1924). Mas é como se a
história de "O Coração das Trevas" fosse narrada ao contrário.
Em vez de se afastar cada vez
mais da civilização européia, indo encontrar o horror e a demência na figura de um branco já engolfado pelas forças da selva, Maqroll sobe o rio para livrar-se da
natureza tropical, até chegar nas
instalações modernas, assépticas,
metálicas dos finlandeses.
Claro que seu projeto de enriquecimento -e, aqui, podemos
pensar, é de toda a América Latina que se trata- se desfaz numa
miragem. Marinheiro erudito e
cosmopolita, o gaveiro Maqroll
nos havia advertido, desde o começo, sobre seu potencial de desconcerto e de alegoria.
"Na Ordem dos Cavaleiros de
Rodes, cujas ruínas se levantam
em uma escarpa perto de Trípoli,
há um túmulo anônimo que exibe a seguinte inscrição: "Não era
aqui". Não há dia em que não medite a respeito dessas palavras.
São muito claras e, ao mesmo
tempo, encerram todo o mistério
que nos é dado suportar."
Resta a Maqroll, depois de presenciar várias mortes, turbilhões,
névoas e ameaças, voltar à estalagem andina da "Neve do Almirante", onde deixara sua amante,
Flor Estévez. Não conto o final.
Apenas é preciso dizer que, nesse
barracão meio arruinado, existe
um corredor estreito que "levava
à varanda dos fundos da casa,
sustentada por umas vigas de
madeira sobre um precipício semicoberto pelo verde das avencas.
Os viajantes iam urinar ali, com
minuciosa paciência, sem nunca
conseguir ouvir o ruído do líquido
se esvaindo na vertigem enevoada e vegetal do despenhadeiro".
Essa varanda talvez seja a gávea terrestre, de onde Maqroll nos
reenvia suas mensagens, ao mesmo tempo simples e sibilinas, colhidas do interior da América:
"Terra à vista!". Terra à vista?
Não, não há terra nenhuma à vista, nenhum destino. Nada é aqui.
Mas o gaveiro ainda tem conselhos a dar.
"Segue os navios", diz ele. "Não
pára. Evita até o porto mais humilde. Sobe os rios. Desce os rios.
Nega toda margem."
@ - coelhofsp@uol.com.br
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