São Paulo, terça-feira, 15 de maio de 2001

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Dançando na selva

Ursula Kaufmann/Divulgação
Cena da peça que Pina Bausch estreou no sábado, em Wuppertal; a coreógrafa se inspirou no Brasil, após excursão de sua companhia pelo país


Trabalho sobre o Brasil, da alemã Pina Bausch, ainda sem título, terá temporada em São Paulo em agosto

FABIO CYPRIANO
ENVIADO ESPECIAL A WUPPERTAL

Imensas paredes brancas (a parte interna de uma usina nuclear??) ocupam o palco na nova criação da coreógrafa alemã Pina Bausch, que estreou no último sábado em Wuppertal.
Quem conhece os cenários criados por Peter Pabst, que em geral simulam materiais orgânicos, surpreendeu-se com o gélido espaço criado para a peça cujo tema é o Brasil.
Entretanto essa impressão de assepsia é transformada tão logo a peça tem início. O branco das paredes e do solo serve de base para as projeções -muitas- feitas durante a peça.
Primeiro são copas de palmeiras, que balançam com o vento ao som de "A Felicidade", de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Aqui, o vento não tem fim e traz uma sensação de afasia. O clima bossa-novista permanece em quase todo o espetáculo e é reforçado a partir do momento em que imensos sofás brancos são postos no palco.
Um lugar agradável e relaxante, o Brasil de Bausch é um imenso "lounge", sem conflitos ou contradições, um espaço para apreciar o pôr-do-sol, imagem recorrente no espetáculo.
Na primeira cena, um casal de bailarinos come uma laranja juntos. Ela conta que estava com muita dor nas pernas no meio da noite e, por isso, levantou-se. Então, quando viu o céu pela janela, ficou feliz porque a dor lhe permitiu ver as estrelas. Assim, a mensagem é clara logo no início da peça: a dor existe, mas há que deixar-se seduzir pela paisagem.

Excursão inspiradora
Como quase sempre, a peça não tinha ainda nome definido na estréia, apenas "Ein Stück von Pina Bausch", ou seja, "Uma Peça de PB". O batismo deve acontecer até agosto, quando a coreógrafa traz a produção a São Paulo e outra cidade (Rio ou Salvador).
O Tanztheater Wuppertal de Bausch passou duas semanas no Brasil em dezembro passado para a criação da nova peça, método que já originou trabalhos inspirados em Hong Kong, Roma e Lisboa, entre outras. Essa é sua primeira peça sobre um país.
Como sempre, a coreógrafa não conta no palco uma história, nem pretende retratar o país. São colagens de impressões e sensações que se transformam em cenas, muitas vezes distantes da fonte inicial, o que evita a criação de estereótipos. Um exemplo: em uma das cenas, um casal de bailarinos passeia com luzinhas que piscam por toda a roupa, como árvores de Natal ambulantes. E vem daí mesmo a inspiração: a pesquisa aconteceu durante o Natal, e os bailarinos se divertiram aqui com o excesso de pisca-piscas, que acabaram no palco.
Mas nem tudo é bossa nova na peça. É quando entram as raízes africanas do Brasil. A segunda projeção da peça reproduz o grupo de Carlinhos Brown no Candyall, em Salvador. Bausch visitou o local duas vezes, e o registro do encontro -com os garotos tocando- tornou-se cenário.
O trabalho comunitário no Candyall também inspirou a coreógrafa a criar cenas, nas quais sua companhia se apresentasse em conjunto, o que tem sido raro nas produções recentes de Bausch.
E, mesmo em fase "light", a coreógrafa retorna a um de seus temas diletos: as disputas entre homens e mulheres. Ao mesmo tempo em que idílicas imagens de índios nadando são projetadas, a bailarina reclama: "Estamos na selva, mas trate-me como uma mulher", enquanto estupra um bailarino.
Situações de conflito e estranhamento marcam a obra de Bausch. Em outra cena, a brasileira Regina Advento canta "Quem Vem pra Beira do Mar", de Dorival Caymmi, enquanto alisa as pernas com um aparelho de fisioterapia. "A Pina não gosta de tudo perfeito, tem que ter sempre uma pequena rachadura, algo que surpreenda", conta Advento à Folha.
Do Brasil, não faltam citações. Há o cafezinho, que os bailarinos servem ao público, enquanto o cheiro toma conta da platéia. E tem também forró -afinal o grupo passou por várias casas dedicadas ao gênero, no Brasil. São cenas rápidas, que poderiam soar clichês, mas não são.
Então, imensos sofás brancos são colocados no palco, momento sem projeções. O palco torna-se espaço de diversão e relaxamento. O grupo brinca com toalhas com desenhos de corpos sensuais -olha aí o culto ao corpo... É o fim do primeiro ato.
Já o segundo ato é mais ágil e coeso. Mais e mais imagens do Brasil tomam conta do palco, até que o cenário é erguido e plantas passam a ocupar todo o espaço. É a vitória da paisagem, já anunciada na primeira cena da peça.
Então imagens aéreas do país envolvem o espectador como num transe, uma grande "viagem", como um cinema em três dimensões. Pantanal, Amazônia e as Cataratas do Iguaçu sucedem-se e colocam o espectador "dentro" do Brasil.
Ao final, brincadeiras com água invadem o palco, que se torna espaço escorregadio e perigoso. Mesas redondas são levadas ao palco, e os bailarinos -sobre elas- procuram equilibrar-se enquanto giram os móveis. Uma bela metáfora sobre o Brasil, onde viver é a arte de correr riscos.



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