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São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2003

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RESENHA

Rushdie restitui caos do mundo

PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA

É na sala das casas de bonecas do Rijksmuseum, em Amsterdã, que o "historiador de idéias aposentado" Malik Solanka tem sua grande inspiração e cria Little Brain (Cérebro Pequeno), uma espécie de Barbie filosófica. Fusão de Lara Croft e Harry Potter, de "sorriso insolente e arrogante indiferença que começava a se chamar de atitude", a boneca, sensual e capaz de enfrentar intelectualmente Aristóteles, Erasmo ou Schopenhauer, torna-se objeto de um verdadeiro culto.
Ganha seu próprio programa de entrevistas, é mestre-de-cerimônias em show de calouros, recomenda produtos na televisão, seu primeiro livro de memórias é colocado pela Amazon na lista de não-ficção... até superar seu criador e passar a destruir a vida de Solanka. Para se liberar do carma de homem responsável e casado, o professor abandona a mulher e o filho de quatro anos e foge para os Estados Unidos com uma boneca de cabelo espetado nos braços, uma edição limitada.
Em Nova York, sente-se perdido. O desconforto existencial que se abatera sobre ele nos primeiros dias de universidade volta a atormentá-lo. Quer rever o filho, mas é vítima dessa fúria que o faz se aproximar da mulher com uma faca em punho e que anuncia a urgência da fuga. Na ironia da cidade que oferece "xales leves como pluma feitos com a pelugem do queixo de cabritos montanheses extintos", parece-lhe impossível reconciliar-se com a vida e encontrar um refúgio meditativo.
Além do sexo e da pouca ação como ingredientes, "Fúria", do anglo-indiano Salman Rushdie (que participa da Bienal do Livro no Rio), retrata o exílio voluntário de um homem célebre que satiriza a cultura de massa americana e sua obsessão pelas celebridades. "Fúria" é o primeiro romance de Rushdie que se passa quase inteiramente nos EUA.
Embora deuses da mitologia convivam com a cultura pop, esta os sobrepõe. "Para o inferno com essa mixórdia clássica. Uma divindade maior estava à sua volta: a América, no auge de seu poder híbrido, onívoro."
O autor se deixa levar por uma erudição proclamadora, quase didática. Repleto de referências sociopolíticas e culturais, "Fúria" adquire o tom de ensaio tão comum nas obras contemporâneas. Povoam a obra o menino cubano Elián González e sua família, Bill Gates e as aflições de um bilionário, Bill Clinton e as discussões sobre o sexo "completo", Bush, Al Gore, Shakespeare, Proust e Woody Allen, entre outros.
Rushdie descreve menos os descontentamentos dos países subdesenvolvidos e mais a sedução e a hegemonia que os Estados Unidos exercem atualmente em boa parte do planeta. "A América era o parque de diversões do mundo, seu livro de regras, árbitro e bola."
Originário de Bombaim, onde viveu até os 13 anos, Rushdie foi influenciado pelo cinema e pelas epopéias orais milenares da Índia antiga onde a realidade e o mito se entremeiam e há uma excepcional intensidade narrativa (que não se reflete nessa obra).
Tal como na cosmogonia hindu, Rushdie absorve e restitui o caos do mundo nessa obra de caráter nitidamente autobiográfico.


Paulo Daniel Farah é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Fúria  
Autor: Salman Rushdie
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38 (312 págs.)
Lançamento: o autor dá palestra no Masp, no dia 19, às 20h; as inscrições podem ser feitas, só hoje, pelo tel. 0/xx/ 11/3032-6143.


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