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RESENHA
Rushdie restitui caos do mundo
PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA
É na sala das casas de
bonecas do Rijksmuseum, em Amsterdã, que o "historiador de idéias aposentado" Malik Solanka tem sua grande inspiração e cria Little Brain (Cérebro
Pequeno), uma espécie de Barbie
filosófica. Fusão de Lara Croft e
Harry Potter, de "sorriso insolente e arrogante indiferença que começava a se chamar de atitude", a
boneca, sensual e capaz de enfrentar intelectualmente Aristóteles, Erasmo ou Schopenhauer,
torna-se objeto de um verdadeiro
culto.
Ganha seu próprio programa de
entrevistas, é mestre-de-cerimônias em show de calouros, recomenda produtos na televisão, seu primeiro livro de memórias é colocado pela Amazon na lista de
não-ficção... até superar seu criador e passar a destruir a vida de
Solanka. Para se liberar do carma
de homem responsável e casado,
o professor abandona a mulher e
o filho de quatro anos e foge para
os Estados Unidos com uma boneca de cabelo espetado nos braços, uma edição limitada.
Em Nova York, sente-se perdido. O desconforto existencial que
se abatera sobre ele nos primeiros
dias de universidade volta a atormentá-lo. Quer rever o filho, mas
é vítima dessa fúria que o faz se
aproximar da mulher com uma
faca em punho e que anuncia a
urgência da fuga. Na ironia da cidade que oferece "xales leves como pluma feitos com a pelugem
do queixo de cabritos montanheses extintos", parece-lhe impossível reconciliar-se com a vida e encontrar um refúgio meditativo.
Além do sexo e da pouca ação
como ingredientes, "Fúria", do
anglo-indiano Salman Rushdie
(que participa da Bienal do Livro
no Rio), retrata o exílio voluntário
de um homem célebre que satiriza a cultura de massa americana e
sua obsessão pelas celebridades.
"Fúria" é o primeiro romance de
Rushdie que se passa quase inteiramente nos EUA.
Embora deuses da mitologia
convivam com a cultura pop, esta
os sobrepõe. "Para o inferno com
essa mixórdia clássica. Uma divindade maior estava à sua volta:
a América, no auge de seu poder
híbrido, onívoro."
O autor se deixa levar por uma
erudição proclamadora, quase didática. Repleto de referências sociopolíticas e culturais, "Fúria"
adquire o tom de ensaio tão comum nas obras contemporâneas.
Povoam a obra o menino cubano
Elián González e sua família, Bill
Gates e as aflições de um bilionário, Bill Clinton e as discussões sobre o sexo "completo", Bush, Al
Gore, Shakespeare, Proust e
Woody Allen, entre outros.
Rushdie descreve menos os descontentamentos dos países subdesenvolvidos e mais a sedução e
a hegemonia que os Estados Unidos exercem atualmente em boa
parte do planeta. "A América era
o parque de diversões do mundo,
seu livro de regras, árbitro e bola."
Originário de Bombaim, onde
viveu até os 13 anos, Rushdie foi
influenciado pelo cinema e pelas
epopéias orais milenares da Índia
antiga onde a realidade e o mito se
entremeiam e há uma excepcional intensidade narrativa (que
não se reflete nessa obra).
Tal como na cosmogonia hindu, Rushdie absorve e restitui o
caos do mundo nessa obra de caráter nitidamente autobiográfico.
Paulo Daniel Farah é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Fúria
Autor: Salman Rushdie
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38 (312 págs.)
Lançamento: o autor dá palestra no
Masp, no dia 19, às 20h; as inscrições
podem ser feitas, só hoje, pelo tel. 0/xx/
11/3032-6143.
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