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São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2003

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GASTRONOMIA

O mar nervosinho e as comidas de Parati

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

O mar durante três dias cuspiu toda a raiva que acumulou nos feriadões, inundou a cidade, acabou com o show do Biquíni Cavadão, se enroscou nas pernas das carolas que assistiam à missa e foram correndo de guarda-chuva assistir à banda Blitz. Fez lama nas entradas dos condomínios, bradou contra todas as vitelas e filés mignons que os turistas trouxeram, os queijos fedorentos, as trufas, que melhor ficariam em São Paulo, nos morumbis da vida.
O mar de Parati gosta de marinas que sejam parte da paisagem e se enrosca contra o Vietnã dos helicópteros, contra as pousadas que imitam toscamente o Centro Histórico, ai, o mar é um implicante de primeira...
Quando vão embora os desentendidos, os que não percebem a roça subjacente à cidadezinha, aqueles que viajam de longe para se casar aqui, nas ilhotas, com todo o aparato das igrejas paulistas, apertando-se em restaurantes dentro d'água, enfiando o salto nos desvãos das pedras, o mar se ri, gordo. Para que, meu Deus? Que idéia...
Agora, o que o mar mais detesta, mesmo, é a comida que nós trazemos, os que vêm de férias. Trufas, ah, brame o mar, como poderia ser mais ridículo, trufas do Piemonte, vocês já imaginaram um piemontês na época das trufas comendo arroz de pequi? É a mesma coisa, gente, nós comendo risoto de trufas com o doce pequi à porta, as lulazinhas pequenas, os polvos macios. E temos patos com as asas se cruzando nas costas, e frangos magrelos, e porcos do mato, e inhames, e carás. Pois, se o Ferran Adrià faz torresmos de pé de frango, por que têm os ricos que comer caviar na terra do jiló e do quiabo?
Mas hoje já se foram todas as visitas. Aos poucos, o mar retoma seu equilíbrio, ainda sofrido, rugindo um pouco nos fundões, mas acalma a sua superfície, vira-se do avesso, mostra muita prata, espumas de chantilly na rabeira do barco. Pisca pisca, bate no barco, lambe as pedras, tuc, tuc, espantando as garças e borboletas amarelas e micos dourados. E uma nuvenzinha, uma só, do tamanho de um tapete de banheiro esgarçado, um dragão de nada se estendeu no céu.
Imagine que teve gente que jogou uma barra de "nutri-diet-pêssego" ali na ilha Comprida logo depois do Catimbau, onde os peixes sobem aos milhares, de todas as cores, para comerem do pão que os turistas jogam. Foi uma luta. Era até engraçado ver. O tablete é duro, gosmento, eles não conseguiam abocanhar de jeito nenhum e o "nutri" lá, boiando rejeitado, os peixes indo embora, desanimados, se mandando para longe, intrigadíssimos com aquela comida nova e desinteressante.
Nas panelas mais elegantes e finas, como as do Dito barqueiro, comem-se lebre, cotia, paca, tatu. Na casa do Edivaldo, da Sandra, do Alexandre, no Caboclo, comem-se porco-do-mato, fruta-pão frita, (ótima, é como mandioca), quentão com garapa. De manhã, desmancha-se o cuscuz de milho para tomar com leite. No prato, uma rodela de cará (cará é inhame, inhame é cará, fique sabendo...) e por cima um fio de manteiga e mel. Ou o cuscuz de milho branco, ou amarelo, com o bom leite das vacas. Ou, por que não, o pãozinho francês que nem francês é, saído quente do forno de uma padaria qualquer.
É, mas depois de toda a encrenca do mar, estamos voltando do passeio, rebocados. O mar sabia, sabia, que fomos nós que jogamos o "nutri bar", poxa, ninguém é de ferro. Foi só isso, nada mais, não fiz suflê de goiabada, comemos a própria com o queijo comprado na serra, bolo foi de fubá, o pão de linguiça, a cachaça da terra.
Ora, castigo é castigo, resta sofrer, e resta também a cachoeira, a água doce, de boa índole, em nada semelhante a este mar, verde mar bravio, metido a nervosinho.

ninahort@uol.com.br


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