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GASTRONOMIA
O mar nervosinho e as comidas de Parati
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
O mar durante três dias cuspiu toda a raiva que acumulou nos feriadões, inundou a cidade, acabou com o show do Biquíni
Cavadão, se enroscou nas pernas
das carolas que assistiam à missa
e foram correndo de guarda-chuva assistir à banda Blitz. Fez lama
nas entradas dos condomínios,
bradou contra todas as vitelas e filés mignons que os turistas trouxeram, os queijos fedorentos, as
trufas, que melhor ficariam em
São Paulo, nos morumbis da vida.
O mar de Parati gosta de marinas que sejam parte da paisagem e
se enrosca contra o Vietnã dos helicópteros, contra as pousadas
que imitam toscamente o Centro
Histórico, ai, o mar é um implicante de primeira...
Quando vão embora os desentendidos, os que não percebem a
roça subjacente à cidadezinha,
aqueles que viajam de longe para
se casar aqui, nas ilhotas, com todo o aparato das igrejas paulistas,
apertando-se em restaurantes
dentro d'água, enfiando o salto
nos desvãos das pedras, o mar se
ri, gordo. Para que, meu Deus?
Que idéia...
Agora, o que o mar mais detesta, mesmo, é a comida que nós
trazemos, os que vêm de férias.
Trufas, ah, brame o mar, como
poderia ser mais ridículo, trufas
do Piemonte, vocês já imaginaram um piemontês na época das
trufas comendo arroz de pequi? É
a mesma coisa, gente, nós comendo risoto de trufas com o doce pequi à porta, as lulazinhas pequenas, os polvos macios. E temos
patos com as asas se cruzando nas
costas, e frangos magrelos, e porcos do mato, e inhames, e carás.
Pois, se o Ferran Adrià faz torresmos de pé de frango, por que têm
os ricos que comer caviar na terra
do jiló e do quiabo?
Mas hoje já se foram todas as visitas. Aos poucos, o mar retoma
seu equilíbrio, ainda sofrido, rugindo um pouco nos fundões,
mas acalma a sua superfície, vira-se do avesso, mostra muita prata,
espumas de chantilly na rabeira
do barco. Pisca pisca, bate no barco, lambe as pedras, tuc, tuc, espantando as garças e borboletas
amarelas e micos dourados. E
uma nuvenzinha, uma só, do tamanho de um tapete de banheiro
esgarçado, um dragão de nada se
estendeu no céu.
Imagine que teve gente que jogou uma barra de "nutri-diet-pêssego" ali na ilha Comprida logo
depois do Catimbau, onde os peixes sobem aos milhares, de todas
as cores, para comerem do pão
que os turistas jogam. Foi uma luta. Era até engraçado ver. O tablete é duro, gosmento, eles não conseguiam abocanhar de jeito nenhum e o "nutri" lá, boiando rejeitado, os peixes indo embora,
desanimados, se mandando para
longe, intrigadíssimos com aquela comida nova e desinteressante.
Nas panelas mais elegantes e finas, como as do Dito barqueiro,
comem-se lebre, cotia, paca, tatu.
Na casa do Edivaldo, da Sandra,
do Alexandre, no Caboclo, comem-se porco-do-mato, fruta-pão frita, (ótima, é como mandioca), quentão com garapa. De manhã, desmancha-se o cuscuz de
milho para tomar com leite. No
prato, uma rodela de cará (cará é
inhame, inhame é cará, fique sabendo...) e por cima um fio de
manteiga e mel. Ou o cuscuz de
milho branco, ou amarelo, com o
bom leite das vacas. Ou, por que
não, o pãozinho francês que nem
francês é, saído quente do forno
de uma padaria qualquer.
É, mas depois de toda a encrenca do mar, estamos voltando do
passeio, rebocados. O mar sabia,
sabia, que fomos nós que jogamos
o "nutri bar", poxa, ninguém é de
ferro. Foi só isso, nada mais, não
fiz suflê de goiabada, comemos a
própria com o queijo comprado
na serra, bolo foi de fubá, o pão de
linguiça, a cachaça da terra.
Ora, castigo é castigo, resta sofrer, e resta também a cachoeira, a
água doce, de boa índole, em nada
semelhante a este mar, verde mar
bravio, metido a nervosinho.
ninahort@uol.com.br
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