São Paulo, sábado, 15 de maio de 2004

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Argentina à meia-luz

Tomás Eloy Martínez resume a história recente do país e sua tradição cultural na voz de um cantor de tango imaginário

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Os tangos que ele canta têm palavras há muito desaparecidas do espanhol falado hoje na Argentina. Os lugares em que se apresenta tampouco correspondem ao mapa da Buenos Aires de nossos dias. São sítios onde, num passado remoto e impreciso, uma bela adolescente morreu às margens do Rio da Prata, uma mulher foi perseguida pela ditadura e os restos mortais de um general foram seqüestrados por montoneros.
Por meio das andanças e do registro onírico do passado realizados por um imaginário cantor de tango, o escritor Tomás Eloy Martínez, 70, promove o encontro entre a história recente da Argentina e sua tradição musical e literária. Seu mais recente romance, "El Cantor de Tango" (Planeta), se passa em Buenos Aires durante a crise de dezembro de 2001, que culminou com a queda do presidente Fernando de la Rúa e o mergulho do país em uma grave crise econômica e política.


"Foram os tempos mais conturbados da história recente da Argentina, talvez os piores. Quatro meses em que o país se encontrou à beira de um abismo e com a forte impressão de que podia desaparecer do mapa"


É nessa cidade fervilhante que desembarca um jovem acadêmico norte-americano que se dedica aos ensaios de Jorge Luis Borges (1899-1986) sobre o tango. Em meio às manifestações e panelaços, o estudante segue a trilha de Julio Martel, um mítico cantor que faz esporádicas apresentações de tangos muito antigos em diferentes rincões da cidade. O rapaz acredita que em Martel está a chave para entender os labirintos formulados pela obra de Borges. "Ele é um aleph de todas as vozes argentinas, as de ontem e as de hoje", diz Martínez, referindo-se a "O Aleph", famoso texto de Borges em que, num velho sótão bonaerense, se encontraria um ponto que concentraria o sentido do mundo, onde todos os pontos no espaço e no tempo seriam visíveis simultaneamente.
Também à história do tango Martínez faz várias referências. O nome de Julio Martel evoca os fonemas de Carlos Gardel, enquanto o personagem possui uma voz poderosa como a de Roberto Goyeneche e uma doença crônica, como a de Luis Cardei.
"El Cantor de Tango" foi um dos livros mais vendidos na última Feria del Libro de Buenos Aires, encerrada no final de semana passado, e tem lançamento no Brasil previsto para outubro, pela Companhia das Letras.
Autor de clássicos recentes da literatura latino-americana, como "Santa Evita" (1996) e "O Romance de Perón" (1998), Martínez hoje ocupa o cargo de diretor do programa de estudos latino-americanos da Rutgers University, de Nova Jersey. Desde os EUA, o escritor concedeu a seguinte entrevista à Folha, por telefone.
 

Folha - Seu protagonista é um estrangeiro que vê Buenos Aires com distanciamento, mas tem com esta uma relação afetiva imensa. É assim que você também vê a cidade?
Tomás Eloy Martínez -
Há uma semelhança entre seu olhar e o meu, mas, em sua estrutura, o personagem é diferente. Queria que fosse um estrangeiro para reagir com certo assombro diante de coisas que para os portenhos hoje parecem óbvias.

Folha - Por que você escolheu cenários pouco conhecidos de Buenos Aires?
Martínez -
Procurei jogar luz em lugares pouco freqüentados por turistas. Ninguém vai a esse lugar labiríntico que é o parque Chas, ou ao Palácio de Águas, que me impressiona por ser um palácio barroco, um cenário que parece a cova de uma gigantesca aranha.

Folha - O cantor de tango canta músicas antigas, mas também reflete vozes de hoje. Julio Martel seria uma espécie de aleph?
Martínez -
Sim, ele é um aleph de todas as vozes argentinas, as de ontem e as de hoje. E tudo o que acontece com o aleph é de certa forma uma paródia ao aleph de Borges. Na verdade, quis reescrever aquele conto.
O romance dialoga, ainda, com alguns momentos centrais da nossa literatura. Há referências a "El Matadero", por exemplo, que é o primeiro conto de Esteban Echeverría (1805-1851).

Folha - Ao resgatar tangos antigos, há também certa nostalgia sua quanto à literatura argentina?
Martínez -
Sim, mas uma nostalgia que tem que ver com a supressão dos sentimentos. É uma velha idéia que tenho sobre a literatura argentina. Em uma conferência de Borges, em 1951, ele diz que os argentinos são cheios de pudor e recatados, o que é distinto do que vemos na TV, por exemplo. Essa observação refere-se a uma literatura não sentimental. Borges predicava que escrever sob o peso dos sentimentos era antiliterário.
Isso de certo modo secou os romances argentinos e produziu histórias encerradas dentro de si mesmas, escritas para minorias. O que proponho aqui é tentar devolver a importância dos sentimentos à nossa literatura.


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