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Argentina à meia-luz
Tomás Eloy Martínez resume a história recente do país e sua tradição cultural na voz de um cantor de tango imaginário
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
Os tangos que ele canta têm palavras há muito desaparecidas do
espanhol falado hoje na Argentina. Os lugares em que se apresenta tampouco correspondem ao
mapa da Buenos Aires de nossos
dias. São sítios onde, num passado remoto e impreciso, uma bela
adolescente morreu às margens
do Rio da Prata, uma mulher foi
perseguida pela ditadura e os restos mortais de um general foram
seqüestrados por montoneros.
Por meio das andanças e do registro onírico do passado realizados por um imaginário cantor de
tango, o escritor Tomás Eloy Martínez, 70, promove o encontro entre a história recente da Argentina
e sua tradição musical e literária.
Seu mais recente
romance, "El Cantor de Tango"
(Planeta), se passa
em Buenos Aires
durante a crise de
dezembro de
2001, que culminou com a queda
do presidente Fernando de la Rúa e
o mergulho do
país em uma grave crise econômica e política.
"Foram os tempos mais conturbados da história recente da Argentina, talvez os piores. Quatro meses em que o país se encontrou à beira de um abismo e com a forte impressão de que podia desaparecer do mapa"
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É nessa cidade
fervilhante que
desembarca um
jovem acadêmico
norte-americano
que se dedica aos
ensaios de Jorge
Luis Borges (1899-1986) sobre o tango. Em meio às
manifestações e
panelaços, o estudante segue a trilha de Julio Martel, um mítico
cantor que faz esporádicas apresentações de tangos muito antigos
em diferentes rincões da cidade. O
rapaz acredita que em Martel está
a chave para entender os labirintos formulados pela obra de Borges. "Ele é um aleph de todas as
vozes argentinas, as de ontem e as
de hoje", diz Martínez, referindo-se a "O Aleph", famoso texto de
Borges em que, num velho sótão
bonaerense, se encontraria um
ponto que concentraria o sentido
do mundo, onde todos os pontos
no espaço e no tempo seriam visíveis simultaneamente.
Também à história do tango
Martínez faz várias referências. O
nome de Julio Martel evoca os fonemas de Carlos Gardel, enquanto o personagem possui uma voz
poderosa como a de Roberto Goyeneche e uma doença crônica,
como a de Luis Cardei.
"El Cantor de Tango" foi um
dos livros mais vendidos na última Feria del Libro de Buenos Aires, encerrada no final de semana
passado, e tem lançamento no
Brasil previsto para outubro, pela
Companhia das Letras.
Autor de clássicos recentes da literatura latino-americana, como
"Santa Evita" (1996) e "O Romance de Perón" (1998), Martínez hoje ocupa o cargo de diretor do
programa de estudos latino-americanos da Rutgers University, de
Nova Jersey. Desde os EUA, o escritor concedeu a seguinte entrevista à Folha, por telefone.
Folha - Seu protagonista é um estrangeiro que vê Buenos Aires com
distanciamento, mas tem com esta
uma relação afetiva imensa. É assim que você também vê a cidade?
Tomás Eloy Martínez - Há uma
semelhança entre seu olhar e o
meu, mas, em sua estrutura, o
personagem é diferente. Queria
que fosse um estrangeiro para
reagir com certo assombro diante
de coisas que para os portenhos
hoje parecem óbvias.
Folha - Por que você escolheu cenários pouco conhecidos de Buenos Aires?
Martínez - Procurei jogar luz em
lugares pouco freqüentados por turistas. Ninguém
vai a esse lugar labiríntico que é o
parque Chas, ou
ao Palácio de
Águas, que me
impressiona por
ser um palácio
barroco, um cenário que parece a
cova de uma gigantesca aranha.
Folha - O cantor
de tango canta
músicas antigas,
mas também reflete vozes de hoje.
Julio Martel seria
uma espécie de
aleph?
Martínez - Sim,
ele é um aleph de
todas as vozes argentinas, as de
ontem e as de hoje. E tudo o que
acontece com o
aleph é de certa
forma uma paródia ao aleph de
Borges. Na verdade, quis reescrever aquele conto.
O romance dialoga, ainda, com
alguns momentos centrais da
nossa literatura. Há referências a
"El Matadero", por exemplo, que
é o primeiro conto de Esteban
Echeverría (1805-1851).
Folha - Ao resgatar tangos antigos, há também certa nostalgia
sua quanto à literatura argentina?
Martínez - Sim, mas uma nostalgia que tem que ver com a supressão dos sentimentos. É uma velha
idéia que tenho sobre a literatura
argentina. Em uma conferência
de Borges, em 1951, ele diz que os
argentinos são cheios de pudor e
recatados, o que é distinto do que
vemos na TV, por exemplo. Essa
observação refere-se a uma literatura não sentimental. Borges predicava que escrever sob o peso
dos sentimentos era antiliterário.
Isso de certo modo secou os romances argentinos e produziu
histórias encerradas dentro de si
mesmas, escritas para minorias.
O que proponho aqui é tentar devolver a importância dos sentimentos à nossa literatura.
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