São Paulo, sábado, 15 de maio de 2004

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RODAPÉ

Paul Celan na Floresta Negra

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Por que um poeta judeu, cuja família foi exterminada num campo de concentração, se tornaria leitor contumaz de um filósofo que pactuou com o nazismo, a ponto de procurar conhecê-lo pessoalmente e lhe dedicar um poema?
É esse o tema de "Paul Celan et Martin Heidegger - Le Sens d'un Dialogue", livro de Hadrien France-Lanord recém-lançado na França. Como diz o subtítulo, esse jovem germanista nascido em 1976 procura esclarecer o significado de um diálogo que é, até hoje, um enigma nas biografias do poeta de "Fuga da Morte" e do pensador de "Ser e Tempo".
Diferentemente de outros pesquisadores, France-Lanord analisou e publicou (ao final do volume) toda a correspondência entre os dois autores. Além disso, examinou os livros de Heidegger pertencentes à biblioteca de Celan e vice-versa, com as anotações que cada um fazia à margem das páginas. O resultado é uma obra em que a crítica genética (que estuda manuscritos) dá lastro documental a uma impressionante reflexão filosófica e filológica.
Com relação a Heidegger, France-Lanord afirma de maneira categórica que os meses em que o filósofo foi reitor da Universidade de Freiburg (1933/1934) jamais significaram adesão ao nazismo. É o ponto mais polêmico do livro. Não há referência, por exemplo, ao ensaio de Victor Farías ("Heidegger e o Nazismo"), que procurou demonstrar o oportunismo e o anti-semitismo heideggerianos. Além disso, France-Lanord diverge fundamentalmente do biógrafo Rüdiger Safranksi ("Heidegger: Um Mestre da Alemanha entre o Bem e o Mal").
Para Safranski, Heidegger incorreu num erro de avaliação: seu encantamento inicial com o nazismo correspondia à necessidade interna de uma filosofia que queria se libertar das ilusões da sociedade moderna. Só depois da guerra ele teria visto no irracionalismo hitlerista uma contrapartida da fúria tecnológica que enlaçava nazismo, capitalismo e comunismo e que seria a consumação lógica de séculos de esquecimento metafísico do "Ser" (reduzido à condição de "ente" manipulável, de coisa entre coisas).
France-Lanord descarta brevemente o livro de Safranski (que não teria ido às fontes textuais) e sustenta que conferências e ensaios vindos a público recentemente provam que, para Heidegger, uma das faces da técnica moderna era "a fabricação de cadáveres em câmaras de gás e campos de extermínio".
Curiosamente, Celan -que se suicidou em 1970 e, portanto, não teve acesso a essa documentação- compreendera desde o início, segundo France-Lanord, que o pensamento de Heidegger era uma crítica à visão de mundo nazista. Nesse sentido, os três encontros de Celan-Heidegger perdem em dramaticidade: o poeta não foi ao chalé do filósofo em Todtnauberg, na Floresta Negra, para cobrar uma retratação; e, ao contrário do que chegaram a escrever Jorge Semprun e George Steiner, o silêncio de Heidegger sobre o Holocausto não foi uma das causas que levaram o poeta a se jogar nas águas do rio Sena.
Em compensação, ganham em densidade intelectual. France-Lanord faz uma minuciosa interpretação do poema "Todtnauberg" e mostra como há uma afinidade de fundo entre a "clareira" heideggeriana e a "u-topia" ("não-lugar") de Celan.
O hermetismo de sua poesia, expresso pelo estilo "paratático" (que justapõe palavras, compondo uma sintaxe espasmódica), seria a realização do projeto heideggeriano de "desvelamento" do Ser a partir de um "horizonte de silêncio", em que "o pensamento pensa a partir de seu elemento próprio: a palavra, e não o quadro lógico-categorial do conceito".
Por outro lado, a decisão do poeta romeno de escrever na língua de seus carrascos (e de Heidegger) mostra a torturante necessidade que Celan tinha de ultrapassar a realidade efetiva, conservando porém a memória de seus mortos: "após Auschwitz, diz France-Lanord, o alemão não pode e não deve mais soar como antes: a quebra rítmica é também cesura epocal; e cavar na língua é também um trabalho de coveiro".


Paul Celan et Martin Heidegger Le Sens d'un Dialogue
    
Autor: Hadrien France-Lanord
Editora: Fayard
Quanto: 20 euros (320 págs.)
Onde encontrar: Livraria Francesa (r. Prof. Atílio Innocenti, 920, SP, tel. 0/xx/ 11/3849-7956)



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