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RODAPÉ
Paul Celan na Floresta Negra
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Por que um poeta judeu, cuja
família foi exterminada num
campo de concentração, se tornaria leitor contumaz de um filósofo
que pactuou com o nazismo, a
ponto de procurar conhecê-lo
pessoalmente e lhe dedicar um
poema?
É esse o tema de "Paul Celan et
Martin Heidegger - Le Sens d'un
Dialogue", livro de Hadrien France-Lanord recém-lançado na
França. Como diz o subtítulo, esse
jovem germanista nascido em
1976 procura esclarecer o significado de um diálogo que é, até hoje, um enigma nas biografias do
poeta de "Fuga da Morte" e do
pensador de "Ser e Tempo".
Diferentemente de outros pesquisadores, France-Lanord analisou e publicou (ao final do volume) toda a correspondência entre
os dois autores. Além disso, examinou os livros de Heidegger pertencentes à biblioteca de Celan e
vice-versa, com as anotações que
cada um fazia à margem das páginas. O resultado é uma obra em
que a crítica genética (que estuda
manuscritos) dá lastro documental a uma impressionante reflexão
filosófica e filológica.
Com relação a Heidegger, France-Lanord afirma de maneira categórica que os meses em que o filósofo foi reitor da Universidade
de Freiburg (1933/1934) jamais
significaram adesão ao nazismo.
É o ponto mais polêmico do livro.
Não há referência, por exemplo,
ao ensaio de Victor Farías ("Heidegger e o Nazismo"), que procurou demonstrar o oportunismo e
o anti-semitismo heideggerianos.
Além disso, France-Lanord diverge fundamentalmente do biógrafo Rüdiger Safranksi ("Heidegger:
Um Mestre da Alemanha entre o
Bem e o Mal").
Para Safranski, Heidegger incorreu num erro de avaliação: seu
encantamento inicial com o nazismo correspondia à necessidade interna de uma filosofia que
queria se libertar das ilusões da
sociedade moderna. Só depois da
guerra ele teria visto no irracionalismo hitlerista uma contrapartida da fúria tecnológica que enlaçava nazismo, capitalismo e comunismo e que seria a consumação lógica de séculos de esquecimento metafísico do "Ser" (reduzido à condição de "ente" manipulável, de coisa entre coisas).
France-Lanord descarta brevemente o livro de Safranski (que
não teria ido às fontes textuais) e
sustenta que conferências e ensaios vindos a público recentemente provam que, para Heidegger, uma das faces da técnica moderna era "a fabricação de cadáveres em câmaras de gás e campos
de extermínio".
Curiosamente, Celan -que se
suicidou em 1970 e, portanto, não
teve acesso a essa documentação- compreendera desde o início, segundo France-Lanord, que
o pensamento de Heidegger era
uma crítica à visão de mundo nazista. Nesse sentido, os três encontros de Celan-Heidegger perdem em dramaticidade: o poeta
não foi ao chalé do filósofo em
Todtnauberg, na Floresta Negra,
para cobrar uma retratação; e, ao
contrário do que chegaram a escrever Jorge Semprun e George
Steiner, o silêncio de Heidegger
sobre o Holocausto não foi uma
das causas que levaram o poeta a
se jogar nas águas do rio Sena.
Em compensação, ganham em
densidade intelectual. France-Lanord faz uma minuciosa interpretação do poema "Todtnauberg" e
mostra como há uma afinidade de
fundo entre a "clareira" heideggeriana e a "u-topia" ("não-lugar")
de Celan.
O hermetismo de sua poesia,
expresso pelo estilo "paratático"
(que justapõe palavras, compondo uma sintaxe espasmódica), seria a realização do projeto heideggeriano de "desvelamento" do Ser
a partir de um "horizonte de silêncio", em que "o pensamento
pensa a partir de seu elemento
próprio: a palavra, e não o quadro
lógico-categorial do conceito".
Por outro lado, a decisão do
poeta romeno de escrever na língua de seus carrascos (e de Heidegger) mostra a torturante necessidade que Celan tinha de ultrapassar a realidade efetiva, conservando porém a memória de
seus mortos: "após Auschwitz, diz
France-Lanord, o alemão não pode e não deve mais soar como antes: a quebra rítmica é também cesura epocal; e cavar na língua é
também um trabalho de coveiro".
Paul Celan et Martin Heidegger
Le Sens d'un Dialogue
Autor: Hadrien France-Lanord
Editora: Fayard
Quanto: 20 euros (320 págs.)
Onde encontrar: Livraria Francesa (r.
Prof. Atílio Innocenti, 920, SP, tel. 0/xx/
11/3849-7956)
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