São Paulo, sábado, 15 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CANNES 2004

Em um documento que imita a estrutura de "Ten", o cineasta explica seu caminho e produz uma nova obra

Abbas Kiarostami dá duas aulas de direção

DO "LE MONDE"

Existem dois tipos de artistas: aqueles que encontram e aqueles que buscam. Os primeiros sujeitam o mundo à sua visão. Os segundos condicionam sua visão ao estado do mundo. Haveria, nos primeiros, algo da ordem do domínio. Nos outros, algo da ordem da experimentação. O cineasta Abbas Kiarostami pertence ao segundo time.
Partindo, nos anos 70, de uma renovação fecunda do neo-realismo italiano em território iraniano, ele atinge hoje a metade de um caminho que já o consagrou como um dos grandes mestres do cinema mundial, nos limites da experimentação plástica.
"10 on Ten", o primeiro de seus filmes apresentados neste Festival de Cannes (e que integrará como bônus uma edição em DVD de "Ten"), explicita esse percurso, sob a forma de uma aula de cinema que retoma, ponto por ponto, a concepção de "Ten" (2002), obra em dez seqüências numeradas em ordem decrescente e filmada por uma câmera fixa no painel de um automóvel.
No volante, Kiarostami entra no lugar de seus personagens e nos conduz de um a dez. Dividida no mesmo tanto de capítulos ("a câmera", "o tema", "a música", "o ator"...), essa demonstração, graciosa e inteligente, descreve um caminho pessoal rumo à leveza do maquinário e à depuração da forma que o diretor concebe e define como "liberação do cinema da prisão dos clichês".
A descoberta da videocâmera -utilizada na última e sublime seqüência de "Gosto de Cereja" (1996)- incita o cineasta a utilizar uma pequena câmera digital para filmar "ABC África" (2001) e, depois, "Ten", cuja simplicidade do dispositivo recoloca, em um grau de complexidade insuspeito, as questões vertiginosas que mobilizam desde sua origem o cinema de Kiarostami: onde está a realidade e onde está a ficção? O que deriva do acaso ou da direção? Onde está o diretor do filme?
Enunciada em termos perfeitamente compreensíveis, essa brilhante reflexão dá prova de uma filosofia do cinema que carrega consigo ao mesmo tempo uma verdadeira humildade e um imenso orgulho, um respeito absoluto pelo espectador e uma determinação em desafiar o gosto do público, uma fé primitiva na simplicidade e um gosto marcado pela complexidade.
Nada poderia atestar melhor isso que sua nova obra, "Five", que, sob a a aparência de um retorno à inocência bíblica do cinema dos irmãos Lumière (cinco seqüências em câmera fixa diante do mar), revela-se tão distorcida, mágica, nebulosa e demoníaca quanto os filmes do pai Méliès.
Tomemos como exemplo o número um. Um banal pedaço de madeira bóia sobre as ondas. Ao sabor do movimento, uma hora fica na areia, noutra, é retomado pelo mar. No movimento de vaivém paira a suspeita do suspense: como isso acabará? Mas isso dura tanto e tão bem que o pedaço de madeira acaba por se partir. Trata-se de produção autônoma de um acidente ou gera suspeita (e se Kiarostami tivesse previamente partido o pedaço de madeira)?
O que quer que seja, na origem desse acontecimento, dois pedaços de madeira encontram-se à deriva, distanciando-se progressivamente um do outro. Desse modo, passa-se sem perceber de um filme contemplativo a um filme de ação. Diante da ameaça iminente de não mais conseguir enquadrar os dois pedaços, qual deles acompanharemos? E por qual razão e o que significaria essa escolha? Assim, somos projetados em uma obra de antecipação.
Finalmente, depois de tantas peripécias nas bordas do plano, o pedaço maior desaparece inexoravelmente, enquanto o foco da objetiva se detém sobre o menor. É o tempo suficiente para que o ciclo recomece e para concluirmos que, em 15 minutos, a partir de um pedaço de madeira flutuando na água, Kiarostami consegue a proeza de sugerir ao espectador, associando ativamente seu pensamento ao trabalho de uma forma, o que é o cinema: a apreensão cativante de uma transformação sobre o fundo melancólico de uma desaparição.


Texto Anterior: "A Vida Breve": Onetti escapa à realidade e ressuscita a literatura
Próximo Texto: Mondo Cannes
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.