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CANNES 2004
Em um documento que imita a estrutura de "Ten", o cineasta explica seu caminho e produz uma nova obra
Abbas Kiarostami dá duas aulas de direção
DO "LE MONDE"
Existem dois tipos de artistas:
aqueles que encontram e aqueles
que buscam. Os primeiros sujeitam o mundo à sua visão. Os segundos condicionam sua visão ao
estado do mundo. Haveria, nos
primeiros, algo da ordem do domínio. Nos outros, algo da ordem
da experimentação. O cineasta
Abbas Kiarostami pertence ao segundo time.
Partindo, nos anos 70, de uma
renovação fecunda do neo-realismo italiano em território iraniano, ele atinge hoje a metade de um
caminho que já o consagrou como um dos grandes mestres do
cinema mundial, nos limites da
experimentação plástica.
"10 on Ten", o primeiro de seus
filmes apresentados neste Festival
de Cannes (e que integrará como
bônus uma edição em DVD de
"Ten"), explicita esse percurso,
sob a forma de uma aula de cinema que retoma, ponto por ponto,
a concepção de "Ten" (2002),
obra em dez seqüências numeradas em ordem decrescente e filmada por uma câmera fixa no
painel de um automóvel.
No volante, Kiarostami entra no
lugar de seus personagens e nos
conduz de um a dez. Dividida no
mesmo tanto de capítulos ("a câmera", "o tema", "a música", "o
ator"...), essa demonstração, graciosa e inteligente, descreve um
caminho pessoal rumo à leveza
do maquinário e à depuração da
forma que o diretor concebe e define como "liberação do cinema
da prisão dos clichês".
A descoberta da videocâmera
-utilizada na última e sublime
seqüência de "Gosto de Cereja"
(1996)- incita o cineasta a utilizar uma pequena câmera digital
para filmar "ABC África" (2001) e,
depois, "Ten", cuja simplicidade
do dispositivo recoloca, em um
grau de complexidade insuspeito,
as questões vertiginosas que mobilizam desde sua origem o cinema de Kiarostami: onde está a
realidade e onde está a ficção? O
que deriva do acaso ou da direção? Onde está o diretor do filme?
Enunciada em termos perfeitamente compreensíveis, essa brilhante reflexão dá prova de uma
filosofia do cinema que carrega
consigo ao mesmo tempo uma
verdadeira humildade e um
imenso orgulho, um respeito absoluto pelo espectador e uma determinação em desafiar o gosto
do público, uma fé primitiva na
simplicidade e um gosto marcado
pela complexidade.
Nada poderia atestar melhor isso que sua nova obra, "Five", que,
sob a a aparência de um retorno à
inocência bíblica do cinema dos
irmãos Lumière (cinco seqüências em câmera fixa diante do
mar), revela-se tão distorcida,
mágica, nebulosa e demoníaca
quanto os filmes do pai Méliès.
Tomemos como exemplo o número um. Um banal pedaço de
madeira bóia sobre as ondas. Ao
sabor do movimento, uma hora
fica na areia, noutra, é retomado
pelo mar. No movimento de vaivém paira a suspeita do suspense:
como isso acabará? Mas isso dura
tanto e tão bem que o pedaço de
madeira acaba por se partir. Trata-se de produção autônoma de
um acidente ou gera suspeita (e se
Kiarostami tivesse previamente
partido o pedaço de madeira)?
O que quer que seja, na origem
desse acontecimento, dois pedaços de madeira encontram-se à
deriva, distanciando-se progressivamente um do outro. Desse modo, passa-se sem perceber de um
filme contemplativo a um filme
de ação. Diante da ameaça iminente de não mais conseguir enquadrar os dois pedaços, qual deles acompanharemos? E por qual
razão e o que significaria essa escolha? Assim, somos projetados
em uma obra de antecipação.
Finalmente, depois de tantas
peripécias nas bordas do plano, o
pedaço maior desaparece inexoravelmente, enquanto o foco da
objetiva se detém sobre o menor.
É o tempo suficiente para que o ciclo recomece e para concluirmos
que, em 15 minutos, a partir de
um pedaço de madeira flutuando
na água, Kiarostami consegue a
proeza de sugerir ao espectador,
associando ativamente seu pensamento ao trabalho de uma forma,
o que é o cinema: a apreensão cativante de uma transformação sobre o fundo melancólico de uma
desaparição.
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