São Paulo, sexta, 15 de maio de 1998

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Filme narra o sonho americano sob a perspectiva de um pênis

LÚCIO RIBEIRO
Editor-adjunto da Ilustrada

Quando surgem os primeiros letreiros de "Boogie Nights", e o delicioso hino da disco music "Best of My Love" nos embala em direção a um dos melhores filmes sobre os anos 70 desde os anos 70, uma questão inicial vem à cabeça.
Será que o apêndice brasileiro ao título original, "Prazer sem Limites", desta obra sobre as aventuras de um rapaz com um pênis de 35 cm foi uma tirada genial ou saiu da cabeça de algum desavisado? A segunda opção é favorita.
De qualquer modo, "Boogie Nights", mesmo envolto pelo véu pornográfico, é um filme sobre a inocência.
O jovem diretor Paul Thomas Anderson, 26, uma das revelações do cinema independente americano, esmiuça o pornô como gênero, filosofia, negócio, metáfora cultural e forma de arte. E tira de tudo isso uma fábula sobre o sonho americano.
O ano é 1977. O local, a Califórnia. A discothèque, a trilha. A cocaína, o meio. O filme pornô, a mensagem. E o astro bem-dotado John Holmes é a referência.
"Boogie Nights" conta a história da ascensão e queda da carreira do ator pornô Dirk Diggler, interpretado por Mark Wahlberg (o ex-rapper Marky Mark, que já foi do New Kids on the Block).
Diggler virou o nome artístico de Eddie, um jovem garçom, pessoa simples, maltratado pela família, que não suporta o lugar onde vive, mas que deposita em uma máxima sua fé para continuar seguindo: "Todos são abençoados com algum dom em especial".
No caso de Eddie, o dom era traduzido em forma de um pênis descomunal, que leva o rapaz a encontrar sua grande oportunidade (ah, a América...) quando:
* é descoberto por um diretor com gestos paternais (Burt Reynolds), uma espécie de David Cardoso da Califórnia pelo clima "Sala Especial" que impinge a suas obras pornô baratas.
* passa a contracenar com a diva pornô de então, Amber Waves (Julianne Moore), que, quando não está em "ação" com o avantajado Eddie, o trata como filho e até o chama de tal.
* ganha até uma "irmãzinha", a Rollergirl (a bela da vez Heather Graham), garota que não tira os patins nem na hora do sexo.
No seio da nova "família", Eddie/Dirkie Diggler prospera (ah, a América...), mas logo chega ao declínio (oh, a América...), assim como o filme pornô para os cinemas, assim como a disco music.
Os anos 70 foram a época da busca do perfeccionismo pessoal, da "cura" pessoal, do "express yourself". O "clássico" "Os Embalos de Sábado à Noite" mostra isso: uma pessoa comum rala em subemprego durante o dia, vai para casa depois do expediente, toma um banho, bota uma roupa e, de repente, à noite se transforma em estrela de uma cena.
"Boogie Nights" apresenta a indústria pornô como a última expressão desses pensamentos, quando o ideário da época chegava a seu limite.
E, quando o diretor Paul Thomas Anderson resolve jogar duro para mostrar esse declínio, o filme decola. E, da "Sala Especial" brasileira, é conduzido a uma coqueteleira que evoca a formação de cinema de Anderson, do sentimentalismo de Coppola/Scorsese ao pastelão cult de Tarantino.
"Boogie Nights" é um dos grandes filmes do ano, desde já. É no mínimo divertido ver como o sonho americano pode ser contado sob a perspectiva de um pênis.



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