São Paulo, Sábado, 15 de Maio de 1999
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ANÁLISE
Mundanismo sufoca a criação no início do festival

France Presse
A atriz mexicana Salma Hayek, que está em Cannes para o festival


LEON CAKOFF
em Cannes

Cannes vive há mais de uma década o dilema de cativar a mídia com as celebridades subindo a escadaria do seu Palais e os autores cujos nomes quer na memória de todos os cinéfilos do mundo.
Uma traição ao amor pelo cinema francês que descobriu que por trás de cada produção bate o coração de um autor. Vivemos de novo um tempo em que não importa como ou por que os filmes são feitos e sim com quem eles foram feitos.
À margem das manobras de mercado e de seus efeitos especiais, onde vale até convocar top models, a criação que vimos nos dias inaugurais do festival foi sufocada pelo mundanismo. Tem mais gente querendo ver quem sobe os degraus da fama do que os filmes.
O cinema francês, visto a superprodução "Pola X", de Leos Carax, matéria prima da "criação publicitária" desde "Mauvais Sang", de 1986, sofre de inchaço.
É muito dinheiro para pouca autoria. Somente no ano passado, as televisões francesas despejaram perto de US$ 250 milhões na produção de cinema francês e de co-produções.
Já o modesto "A Mort la Mort!" (Abaixo a Morte!), de Romain Goupil, que inaugurou a paralela Quinzena dos Realizadores, mostra o que o cinema francês faz de melhor no cinema: falar.
Goupil ("Morrer aos 30 Anos", 1982) é especialista na geração 68. "A Mort la Mort!" tem uma das melhores piadas da temporada. Vemos no começo do filme uma associação de manifestantes anônimos, como a de alcoólatras anônimos, com seus membros contando os dias sem participar de um protesto ou organizar uma passeata.
Também simples e implacável é o combativo israelense Amos Gitaì, que tem "Kadosh" na competição. Tem efeito mais arrasador do que qualquer produção que se vende por efeitos especiais.
Ele invade a vida conjugal de um casal de judeus ultra-ortodoxos de Jerusalém. E sai em defesa das mulheres secularmente submissas.
Na linha dogmática do dinamarquês "Festa de Família", "Wonderland", do inglês Michael Winterbottom ("Bem-Vindo a Sarajevo"), mergulha na crise social em Londres e segue três amigas e o modo com que elas encaram os subempregos e os homens. Tudo com uma câmera de vídeo na mão, com imagens fortes e precárias depois passadas para película 35mm.
Coincidência. Antes da projeção, a Sony mostrou exemplos de filmagens com sua nova tecnologia HD, melhorando a qualidade de gravações em vídeo para pós-produção em filmes para cinema. Alta tecnologia digital também foi vista com a exibição de "O Diário de Anne Frank", de Julian Y. Wolff, em versão de desenho animado.
O efeito Miramax (Disney), que dispôs somas milionárias para vender filmes assim simples, continua provocando reações dos grandes de Hollywood.
A primeira foi a Columbia, com a sua divisão Sony Classics, que promoveu "Central do Brasil", de Walter Salles. Agora vem a Paramount Classics querendo uma fatia do mercado de filmes independentes. Entre suas duas primeiras aquisições estão "Barril de Pólvora", do iugoslavo Goran Paskaljevic, e "Trem da Vida", do romeno-francês Radu Mihaileanu, prêmio do público e da crítica da última Mostra de Cinema de São Paulo.
Cannes pode estar certa na sua ação mundanista. Promove autores e idéias criativas, embalando-as com uma queda para a vulgaridade. Agora vêm também as "majors" correndo atrás do prejuízo. Descobriram que vida inteligente no cinema também rende dividendos.


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