São Paulo, quarta-feira, 15 de junho de 2005

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TEATRO

O dramaturgo e diretor argentino participa do Festival Internacional de Londrina com "La Estupidez", sobre avareza

Rafael Spregelburd encena vale-tudo contemporâneo

VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL A LONDRINA

O dinheiro é um "valor" universal mais reconhecido do que a inteligência, aposta a dramaturgia do argentino Rafael Spregelburd, 35, um dos expoentes da cena contemporânea em seu país.
Suas peças invariavelmente passam pelo desmonte de instituições como a família, a religião e as representações de poder na política e na economia. "Há sempre uma interpretação bastante paródica dos falsos modos de vida, um questionamento do senso comum", diz Spregelburd, que participa do Festival Internacional de Londrina (Filo) com "La Estupidez" (2002), que versa sobre a avareza (Circo Funcart, hoje e amanhã, às 20h).
Foi escrita justamente quando a Argentina atravessa sua pior crise econômica dos últimos tempos. "Não me interessa usar o teatro para dizer que o dinheiro faz bem ou faz mal, quando todos sabemos que ele [o vil metal] transforma as relações pessoais, institucionais", diz o autor. À falta literal de grana, Spregelburd contrapôs uma comédia absurda, de tons melodramáticos, sobre personagens dispostos a tudo por dinheiro: roubam, jogam e trapaceiam, não importa a ordem.
O tabuleiro da história é Las Vegas. Entre os "jogadores compulsivos", estão dois contrabandistas de obras de arte que tentam vender um quadro antes que ele se apague; policiais motorizados que enredam por traições; um cientista que mantém uma relação problemática com o filho; e mafiosos empenhados na fabricação de uma nova estrela pop.
Spregelburd pensa o teatro como roteiro de cinema, daí a perspectiva de "road movie" que adota para "La Estupidez". É um teatro de situações, sem o imperativo da palavra. "Na Argentina, há uma tradição do teatro de matriz mais literária, mais européia. Faço parte de uma geração de autores que pensa o teatro quase como se pensa o cinema; a dramaturgia é quase como um roteiro. Às vezes, não tem um valor literário, inexistem metáforas e fala do que se tem que falar, sem o intento de "poetizar", como na literatura pura. A poesia tem a ver com a construção do texto, com as situações que a peça cria", diz Spregelburd.
"La Estupidez" faz parte do projeto do argentino de escrever peças inspiradas na "Heptalogia" do pintor flamengo Hieronymus Bosch (1450-1516) sobre os sete pecados. Já foram encenadas "A Inapetência" (2003), "O Pânico" (2003), "A Modéstia" (1999) e "A Extravagância" (1997).
Como ocorre à maioria dos dramaturgos brasileiros que despontou nos últimos anos, Spregelburd vincula sua produção a um grupo. No seu caso, o El Patrón Vazquez, de Buenos Aires, do qual foi um dos fundadores, em 1994, ao lado da atriz e autora Andrea Garrote -completam o elenco Héctor Díaz, Mónica Raiola e Alberto Suárez.
Quando lhe ocorre escrever mais enfaticamente sobre realidade das ruas, recurso do qual o teatro latino-americano abusa, segundo ele, Spregelburd se esquiva de montar o texto em seu país. Foi o caso de "Um Momento Argentino" (2000), escrita em intercâmbio com o Royal Court Theatre, de Londres, dentro de um programa internacional de defesa dos direitos humanos.
A crise que sacudiu o seu país, "um proveitoso laboratório mundial para os experimentos do neoliberalismo", deflagrou injustiças. "Montar a peça na Argentina seria insuportável, difícil de ver. Não tem sentido voltar aos temas que estão na boca de todo mundo", afirma.
Em tempo: Patrón Vazquez, ou Patrão Vasques, é o chefe do ajudante de guarda-livros Bernardo Soares/Fernando Pessoa em "O Livro do Desassossego". Em castelhano, "patrón" pode se referir também ao vizinho.


O jornalista Valmir Santos viajou a convite da organização do Filo 2005

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