|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENSAIO
Jorge Luis Borges e Ernesto Sabato dialogam em livro de Orlando Barone
Argentinos discutem razão, sonho e literatura
JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL
Jorge Luis Borges está sentado à
poltrona, com os olhos cegos a
perscrutar o vazio. Um apartamento de Buenos Aires se deixa
penetrar pelo silêncio, tranqüilo
de saber que mais cedo ou mais
tarde vozes fortes cuidarão de encobri-lo. A cena é habitual, narrada por tantos que já flagraram o
grande escritor argentino assim,
com as mãos a apertar a bengala,
apoiada reta sobre os joelhos. A
diferença, agora, é o corpo que se
inquieta em outra poltrona, espreitando-o de soslaio, embora
sem ansiedade. Trata-se de Ernesto Sabato, outro ícone da literatura portenha. Sabato, 12 anos
mais jovem que o primeiro, será,
agora, seu interlocutor.
14 de dezembro de 1974. Não é o
acaso que os faz se reunirem, e
sim o poder de persuasão do jornalista Orlando Barone. Trata-se
de um reencontro entre colegas
de ofício que há tempos abandonaram as relações cordiais, afastados por divergências políticas.
Nesse ano, o tema é tenso no país,
poucos meses após a morte de
Juan Domingo Perón. Neste diálogo, no entanto, o peronismo
não há de aparecer. Eis a única regra, estabelecida por Borges: nada
de política. Sabato resignou-se.
Talvez dessa regra resulte o sucesso do livro "Diálogos: Borges/
Sabato" (Globo) organizado por
Barone e recém lançado no Brasil,
que transcreve esse e outros seis
encontros entre os autores, que
ocorreram até março do ano seguinte. Não porque deixasse de
ser interessante ouvi-los falar do
momento político que anunciava
o surgimento da cruel ditadura.
Mas porque o texto ganhou transcendência, afastou-se da realidade, banal ou não, acariciando a
tão sonhada eternidade literária.
Afastou-se da realidade? Não,
eles não deixariam dizê-lo. "Porque a literatura não é menos real
do que aquilo que se chama realidade", explica Borges, em uma de
suas frases habituais. Sabato, por
outras linhas, recobrará o assunto
dias mais tarde: "Além de ser a arte uma criação, e não um reflexo,
a realidade que ela cria é mais perdurável e intensa do que a que lhe
serviu de base. Da Grécia de Homero não resta nada ou quase nada. Seus poemas resistiram mais
do que suas cidades."
Quem explica o efeito é a privilegiada testemunha, em entrevista à Folha: "A razão, mesmo naqueles pensadores mais cartesianos, se dispara a partir de um sentimento que a antecede". Barone
antecipa, assim, as declarações de
repúdio à racionalidade que serão
recorrentes no diálogo. "A razão
serve para bem pouca coisa (...) Só
mediante uma crença podemos
admitir a existência desta mesa",
afirma Sabato.
Entretanto, convém ao leitor
desconfiar de declarações pertinazes. Páginas ou dias mais tarde,
Borges e Sabato, senhores de suas
razões, recusarão um a um argumentos sobre a realidade dos sonhos, ou sobre a irrealidade da vigília. "Há um argumento de Schopenhauer que me parece refutável: ele escreveu que a vida e os sonhos eram páginas de um mesmo
livro, e que lê-las em ordem é viver, e folheá-las, sonhar", diz Borges. "Não me convence tampouco. O sonho é outro livro, não um
livro folheado", reitera Sabato.
Quanto às diferenças entre os
autores? Barone as delimita: "Sabato é uma inteligência desesperada buscando o desconhecido
onírico. Borges é uma natureza
artística despreocupada. Sabato
luta a literatura. Borges a aceita."
Texto Anterior: Cineasta lança DVD com debate Próximo Texto: Teatro: Rafael Spregelburd encena vale-tudo contemporâneo Índice
|