São Paulo, quarta-feira, 15 de junho de 2005

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ENSAIO

Jorge Luis Borges e Ernesto Sabato dialogam em livro de Orlando Barone

Argentinos discutem razão, sonho e literatura

JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

Jorge Luis Borges está sentado à poltrona, com os olhos cegos a perscrutar o vazio. Um apartamento de Buenos Aires se deixa penetrar pelo silêncio, tranqüilo de saber que mais cedo ou mais tarde vozes fortes cuidarão de encobri-lo. A cena é habitual, narrada por tantos que já flagraram o grande escritor argentino assim, com as mãos a apertar a bengala, apoiada reta sobre os joelhos. A diferença, agora, é o corpo que se inquieta em outra poltrona, espreitando-o de soslaio, embora sem ansiedade. Trata-se de Ernesto Sabato, outro ícone da literatura portenha. Sabato, 12 anos mais jovem que o primeiro, será, agora, seu interlocutor.
14 de dezembro de 1974. Não é o acaso que os faz se reunirem, e sim o poder de persuasão do jornalista Orlando Barone. Trata-se de um reencontro entre colegas de ofício que há tempos abandonaram as relações cordiais, afastados por divergências políticas. Nesse ano, o tema é tenso no país, poucos meses após a morte de Juan Domingo Perón. Neste diálogo, no entanto, o peronismo não há de aparecer. Eis a única regra, estabelecida por Borges: nada de política. Sabato resignou-se.
Talvez dessa regra resulte o sucesso do livro "Diálogos: Borges/ Sabato" (Globo) organizado por Barone e recém lançado no Brasil, que transcreve esse e outros seis encontros entre os autores, que ocorreram até março do ano seguinte. Não porque deixasse de ser interessante ouvi-los falar do momento político que anunciava o surgimento da cruel ditadura. Mas porque o texto ganhou transcendência, afastou-se da realidade, banal ou não, acariciando a tão sonhada eternidade literária.
Afastou-se da realidade? Não, eles não deixariam dizê-lo. "Porque a literatura não é menos real do que aquilo que se chama realidade", explica Borges, em uma de suas frases habituais. Sabato, por outras linhas, recobrará o assunto dias mais tarde: "Além de ser a arte uma criação, e não um reflexo, a realidade que ela cria é mais perdurável e intensa do que a que lhe serviu de base. Da Grécia de Homero não resta nada ou quase nada. Seus poemas resistiram mais do que suas cidades."
Quem explica o efeito é a privilegiada testemunha, em entrevista à Folha: "A razão, mesmo naqueles pensadores mais cartesianos, se dispara a partir de um sentimento que a antecede". Barone antecipa, assim, as declarações de repúdio à racionalidade que serão recorrentes no diálogo. "A razão serve para bem pouca coisa (...) Só mediante uma crença podemos admitir a existência desta mesa", afirma Sabato.
Entretanto, convém ao leitor desconfiar de declarações pertinazes. Páginas ou dias mais tarde, Borges e Sabato, senhores de suas razões, recusarão um a um argumentos sobre a realidade dos sonhos, ou sobre a irrealidade da vigília. "Há um argumento de Schopenhauer que me parece refutável: ele escreveu que a vida e os sonhos eram páginas de um mesmo livro, e que lê-las em ordem é viver, e folheá-las, sonhar", diz Borges. "Não me convence tampouco. O sonho é outro livro, não um livro folheado", reitera Sabato.
Quanto às diferenças entre os autores? Barone as delimita: "Sabato é uma inteligência desesperada buscando o desconhecido onírico. Borges é uma natureza artística despreocupada. Sabato luta a literatura. Borges a aceita."


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