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MARCELO COELHO
Erros e acertos ideológicos
No dia 21 de junho comemora-se o centenário de nascimento de Jean-Paul Sartre e, no
meio do considerável volume de
textos que vão aparecendo a propósito da data, o nome de outro
intelectual, também nascido em
1905, persegue o de Sartre como
uma sombra: trata-se de Raymond Aron, o sóbrio e discreto
pensador político de quem o autor de "A Náusea" foi grande
amigo na juventude.
As divergências doutrinárias
(Sartre, sempre à esquerda de alguma coisa, e Aron, estabilizado
na centro-direita) afastariam por
várias décadas os dois "camaradinhas" -este o termo com que
se tratavam mutuamente. A efeméride e, mais do que isso, o ambiente ideológico em que vivemos
estimulam, contudo, as comparações entre os dois, e Raymond
Aron acaba emergindo como o
personagem mais lúcido, mais
confiável, de longe o menos equivocado da dupla.
Mesmo assim, uma frase famosa resume o estado da questão:
"Melhor errar com Sartre do que
acertar com Aron". Sérgio Augusto, no "Estado de S.Paulo" de domingo passado, foi eloqüente ao
mostrar a grandeza de Sartre e a
relativa desimportância simbólica de Aron, na história do século
20. Isso me parece indiscutível.
Mas queria discutir um pouco a
tal frase. Terá sido melhor errar
ao lado de Sartre? Por quê? Sem
dúvida, a lucidez de Aron era escassa em paixão e utopia. Não seria isso uma vantagem? Aquele
politólogo moderado, mas inflexível em sua defesa da democracia
ocidental, dos direitos humanos e
do liberalismo econômico, nunca
se deixou enganar pelas auroras e
esparrelas da União Soviética, da
China, de Cuba ou da Iugoslávia,
como tantos grandes nomes da
esquerda européia. Para não falar no grande vexame de Michel
Foucault, elogiando o regime do
aiatolá Khomeini no Irã.
Aron de fato equivocou-se pouco, e a razão, acima de tudo,
orientava seus engajamentos.
Mas, quando aquele analista desapaixonado terminava sempre
defendendo o status quo -o capitalismo liberal contra os arroubos de maio de 68, por exemplo,
nos quais Sartre mergulhou bravamente-, se torna talvez difícil
distinguir entre o que é razão e o
que, na prática, se tornava defesa
de determinados interesses econômicos e políticos.
Já as intervenções de Sartre pareciam mais desinteressadas; o
incendiário não teme sair chamuscado de suas ações, e nisso
tem algo de mais admirável do
que as figuras excessivamente
prudentes. Num sentido propriamente existencial, a vida de Sartre foi mais bonita de ser vivida,
mais representativa, com todas as
suas reviravoltas, do que a de
Aron; e este nunca teve a chama
de seu "petit camarade".
Tudo bem. Mas nada disso me
convence muito. Pode-se preferir
o erro por vários motivos, mas
não há nada de intelectual nessa
preferência. Em nome da emoção,
da simpatia, do romantismo de
uma personalidade, será o caso
de abandonarmos os critérios
propriamente intelectuais de julgamento? O papel do intelectual é
ser um Lawrence da Arábia, um
Robin Hood? Ou é o de esclarecer,
iluminar, procurar a verdade?
Óbvio que o dilema não é tão
simples assim. A oposição entre o
intelectual heróico e o intelectual
frio, entre o campeão dos grandes
princípios e o cientista de gabinete, entre o criador de idéias e o crítico equilibrado, entre Sartre e
Aron não admite uma solução
única.
O problema é que houve uma
época -o século 18- e um país
-a França, já se sabe- em que o
exercício da desmistificação e da
lucidez era, ao mesmo tempo, um
ato "romântico", heróico, emocionante e até mesmo bem-sucedido. Para os iluministas, a razão
era algo a ser defendida com talentos de espadachim. Voltaire,
Rousseau, Diderot eram filósofos
e dramaturgos, analistas políticos
e literatos ao mesmo tempo, proeza que somente Sartre foi capaz
de reeditar no século 20 -mas ao
preço de muitos erros. No século
18, o exercício da razão e o talento
artístico andavam juntos; espírito
crítico e imaginação livre eram,
de certa forma, a mesma coisa.
No século 20, razão e utopia, risco
e lucidez, criatividade artística e
espírito analítico já haviam se
dissociado em grande parte.
Sintoma, para falar como Sartre, de uma crise do pensamento
burguês? Para Aron, esse vocabulário talvez já tivesse algo de mítico, de impreciso, de messiânico,
de suspeito. Mas não é preciso ser
marxista -basta ler, por exemplo, "Montanha Mágica", de
Thomas Mann- para saber que,
neste caso, o diagnóstico faz algum sentido.
Sartre justamente tentou se desvencilhar dessa limitação. Mas
quanta ginástica! Cito, para encerrar, um trecho de seu livro
"Em Defesa dos Intelectuais"
(editora Ática), que reúne três
conferências feitas no Japão em
1965. Sartre dizia, corretamente,
que a um intelectual não basta
condenar o racismo com base em
raciocínios abstratos, universais.
"Pode-se acreditar sinceramente
no discurso universal do anti-racismo e, nas longínquas profundezas ligadas à infância, continuar racista e, ao mesmo tempo,
se comportar, sem saber, como racista na vida cotidiana." Logo em
seguida, passamos de um raciocínio lúcido para a defesa do indefensável.
"Um dos grandes perigos que o
intelectual deve evitar", prossegue Sartre, "é universalizar depressa demais. Já vi deles que,
apressados em passar para o universal, condenavam, durante a
guerra da Argélia, os atentados
terroristas argelinos equiparando-os à repressão francesa. É o tipo mesmo da falsa universalidade burguesa. Seria preciso compreender, ao contrário, que a insurreição na Argélia, insurreição
de pobres, sem armas, acossados
por um regime policial, não podia
deixar de escolher a resistência
armada e a bomba". Prefiro acertar com Aron.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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