São Paulo, quarta-feira, 15 de junho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Erros e acertos ideológicos

No dia 21 de junho comemora-se o centenário de nascimento de Jean-Paul Sartre e, no meio do considerável volume de textos que vão aparecendo a propósito da data, o nome de outro intelectual, também nascido em 1905, persegue o de Sartre como uma sombra: trata-se de Raymond Aron, o sóbrio e discreto pensador político de quem o autor de "A Náusea" foi grande amigo na juventude.
As divergências doutrinárias (Sartre, sempre à esquerda de alguma coisa, e Aron, estabilizado na centro-direita) afastariam por várias décadas os dois "camaradinhas" -este o termo com que se tratavam mutuamente. A efeméride e, mais do que isso, o ambiente ideológico em que vivemos estimulam, contudo, as comparações entre os dois, e Raymond Aron acaba emergindo como o personagem mais lúcido, mais confiável, de longe o menos equivocado da dupla.
Mesmo assim, uma frase famosa resume o estado da questão: "Melhor errar com Sartre do que acertar com Aron". Sérgio Augusto, no "Estado de S.Paulo" de domingo passado, foi eloqüente ao mostrar a grandeza de Sartre e a relativa desimportância simbólica de Aron, na história do século 20. Isso me parece indiscutível.
Mas queria discutir um pouco a tal frase. Terá sido melhor errar ao lado de Sartre? Por quê? Sem dúvida, a lucidez de Aron era escassa em paixão e utopia. Não seria isso uma vantagem? Aquele politólogo moderado, mas inflexível em sua defesa da democracia ocidental, dos direitos humanos e do liberalismo econômico, nunca se deixou enganar pelas auroras e esparrelas da União Soviética, da China, de Cuba ou da Iugoslávia, como tantos grandes nomes da esquerda européia. Para não falar no grande vexame de Michel Foucault, elogiando o regime do aiatolá Khomeini no Irã.
Aron de fato equivocou-se pouco, e a razão, acima de tudo, orientava seus engajamentos. Mas, quando aquele analista desapaixonado terminava sempre defendendo o status quo -o capitalismo liberal contra os arroubos de maio de 68, por exemplo, nos quais Sartre mergulhou bravamente-, se torna talvez difícil distinguir entre o que é razão e o que, na prática, se tornava defesa de determinados interesses econômicos e políticos.
Já as intervenções de Sartre pareciam mais desinteressadas; o incendiário não teme sair chamuscado de suas ações, e nisso tem algo de mais admirável do que as figuras excessivamente prudentes. Num sentido propriamente existencial, a vida de Sartre foi mais bonita de ser vivida, mais representativa, com todas as suas reviravoltas, do que a de Aron; e este nunca teve a chama de seu "petit camarade".
Tudo bem. Mas nada disso me convence muito. Pode-se preferir o erro por vários motivos, mas não há nada de intelectual nessa preferência. Em nome da emoção, da simpatia, do romantismo de uma personalidade, será o caso de abandonarmos os critérios propriamente intelectuais de julgamento? O papel do intelectual é ser um Lawrence da Arábia, um Robin Hood? Ou é o de esclarecer, iluminar, procurar a verdade?
Óbvio que o dilema não é tão simples assim. A oposição entre o intelectual heróico e o intelectual frio, entre o campeão dos grandes princípios e o cientista de gabinete, entre o criador de idéias e o crítico equilibrado, entre Sartre e Aron não admite uma solução única.
O problema é que houve uma época -o século 18- e um país -a França, já se sabe- em que o exercício da desmistificação e da lucidez era, ao mesmo tempo, um ato "romântico", heróico, emocionante e até mesmo bem-sucedido. Para os iluministas, a razão era algo a ser defendida com talentos de espadachim. Voltaire, Rousseau, Diderot eram filósofos e dramaturgos, analistas políticos e literatos ao mesmo tempo, proeza que somente Sartre foi capaz de reeditar no século 20 -mas ao preço de muitos erros. No século 18, o exercício da razão e o talento artístico andavam juntos; espírito crítico e imaginação livre eram, de certa forma, a mesma coisa. No século 20, razão e utopia, risco e lucidez, criatividade artística e espírito analítico já haviam se dissociado em grande parte.
Sintoma, para falar como Sartre, de uma crise do pensamento burguês? Para Aron, esse vocabulário talvez já tivesse algo de mítico, de impreciso, de messiânico, de suspeito. Mas não é preciso ser marxista -basta ler, por exemplo, "Montanha Mágica", de Thomas Mann- para saber que, neste caso, o diagnóstico faz algum sentido.
Sartre justamente tentou se desvencilhar dessa limitação. Mas quanta ginástica! Cito, para encerrar, um trecho de seu livro "Em Defesa dos Intelectuais" (editora Ática), que reúne três conferências feitas no Japão em 1965. Sartre dizia, corretamente, que a um intelectual não basta condenar o racismo com base em raciocínios abstratos, universais. "Pode-se acreditar sinceramente no discurso universal do anti-racismo e, nas longínquas profundezas ligadas à infância, continuar racista e, ao mesmo tempo, se comportar, sem saber, como racista na vida cotidiana." Logo em seguida, passamos de um raciocínio lúcido para a defesa do indefensável.
"Um dos grandes perigos que o intelectual deve evitar", prossegue Sartre, "é universalizar depressa demais. Já vi deles que, apressados em passar para o universal, condenavam, durante a guerra da Argélia, os atentados terroristas argelinos equiparando-os à repressão francesa. É o tipo mesmo da falsa universalidade burguesa. Seria preciso compreender, ao contrário, que a insurreição na Argélia, insurreição de pobres, sem armas, acossados por um regime policial, não podia deixar de escolher a resistência armada e a bomba". Prefiro acertar com Aron.


@ - coelhofsp@uol.com.br

Texto Anterior: Moda excêntrica abre Fashion Rio
Próximo Texto: Panorâmica - Literatura: "New York Times" elogia cordel
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.