São Paulo, sábado, 15 de julho de 2000


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LIVROS/LANÇAMENTOS

"EM RITMO DE CONCERTO"
Romance faz sátira ao stalinismo

JOSÉ ARBEX
ESPECIAL PARA A FOLHA

Receita para um ótimo romance: misture, com grande talento, o finíssimo estilo mordaz e irônico de um Nicolai Gogol, o livre recurso ao mais delirante "realismo fantástico" - como, por exemplo, o adotado por Yuri Mamim no filme "Salada Russa em Paris" (ou Janela para Paris, no título original) - e a duríssima experiência da vida na Rússia pré e pós-soviética. Pronto. Assim surgiu "Em Ritmo de Concerto", do físico e economista russo Nicolai (grafado pela editora, talvez Deus saiba a razão, como Nikolai, com "k") Dejnióv.
O livro narra as aventuras de três entidades angelicais: Lucário, do Departamento de Força e Luz; Sierpiná, do Departamento das Forças das Trevas, e Chepethuka, que espiona Lucário.
O bom anjo apaixona-se por Ana, uma terráquea casada, e é por isso obrigado a enfrentar um terrível dilema: encarnar na forma humana e viver a aventura do amor, ou prosseguir o caminho da luz, como anjo (tema familiar aos que viram "Asas do Desejo", de Wim Wenders).
Qualquer pessoa minimamente familiarizada com a história do stalinismo notará que esse embate entre anjos - assim como a prática da espionagem - funciona como metáfora da maneira pela qual o antigo Partido Comunista da União Soviética debatia as idéias. O mundo era rigidamente dividido entre "Bem" e "Mal"; não havia nuances. O problema, para Lucário, é que o amor por Ana subverte uma explicação tão simples do mundo.
Ana é sobrinha e herdeira de Kovaliévskaia, velha militante comunista que morreu acreditando na total legitimidade do stalinismo. Já no primeiro parágrafo do livro, ao descrever a "dama de ferro", Dejnióv dá uma brilhante demonstração de seu talento:
"A velha Kovaliévskaia morreu em março, em pleno início da primavera. Alguém poderia dizer: resolveu e morreu, mas a própria Kovaliévskaia, se viva estivesse, nunca iria concordar com semelhante afirmação. Membro do Partido desde 1932, não acreditava em mística. Sua vida passara como a realidade objetiva que lhe fora dada em sensações, e a morte lhe deveria chegar com a mesma cumplicidade e clareza. "Que viva o país natal" - cantava Kovaliévskaia com todo o povo -, e o país vivia, ao passo que ela não aspirava a esse luxo: ela não tinha tempo, ela lutava."
É evidente, neste pequeno trecho, a crítica mordaz a algumas das concepções mais cultivadas pelo stalinismo: o desprezo por qualquer referência à transcendência, a rígida separação entre "realidade objetiva" e a "subjetividade", o elogio do patriotismo e do "povo" como modelo e inspiração, a abnegação missionária do militante que se recusa a viver.
Na Rússia contemporânea, a reflexão sobre o stalinismo se impõe como necessidade vital aos que tentam compreender a própria história (mais ou menos como, na Alemanha, a experiência nazista é tema recorrente, com a diferença de que, na Rússia, só a perestroika possibilitou essa reflexão, já no final dos anos 80).
Lucário, personagem central do livro, faz uma viagem no tempo, volta aos anos 30, quando encontra o auge do terror stalinista. É o artista que, de forma muito bem-humorada, se pergunta como isso tudo foi possível.
É claro que o livro será muito mais interessante para quem conhece a história russa, mas esta não é uma condição necessária à sua leitura. Em muitos trechos, o leitor, felizmente, é auxiliado pelas notas explicativas de Paulo Bezerra, livre-docente em literatura russa, que fez um excelente trabalho de tradução.
Divirta-se, portanto, caro leitor!
Em Ritmo de Concerto



In Concert Performance      Autor: Nikolai Dejnióv Tradução: Paulo Bezerra Editora: Objetiva Quanto: R$ 27,20 (333 págs.)



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