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LIVROS/LANÇAMENTOS
"EM RITMO DE CONCERTO"
Romance faz sátira ao stalinismo
JOSÉ ARBEX
ESPECIAL PARA A FOLHA
Receita para um ótimo romance: misture, com grande
talento, o finíssimo estilo mordaz
e irônico de um Nicolai Gogol, o
livre recurso ao mais delirante
"realismo fantástico" - como,
por exemplo, o adotado por Yuri
Mamim no filme "Salada Russa
em Paris" (ou Janela para Paris,
no título original) - e a duríssima experiência da vida na Rússia
pré e pós-soviética. Pronto. Assim
surgiu "Em Ritmo de Concerto",
do físico e economista russo Nicolai (grafado pela editora, talvez
Deus saiba a razão, como Nikolai,
com "k") Dejnióv.
O livro narra as aventuras de
três entidades angelicais: Lucário,
do Departamento de Força e Luz;
Sierpiná, do Departamento das
Forças das Trevas, e Chepethuka,
que espiona Lucário.
O bom anjo apaixona-se por
Ana, uma terráquea casada, e é
por isso obrigado a enfrentar um
terrível dilema: encarnar na forma humana e viver a aventura do
amor, ou prosseguir o caminho
da luz, como anjo (tema familiar
aos que viram "Asas do Desejo",
de Wim Wenders).
Qualquer pessoa minimamente
familiarizada com a história do
stalinismo notará que esse embate entre anjos - assim como a
prática da espionagem - funciona como metáfora da maneira pela qual o antigo Partido Comunista da União Soviética debatia as
idéias. O mundo era rigidamente
dividido entre "Bem" e "Mal";
não havia nuances. O problema,
para Lucário, é que o amor por
Ana subverte uma explicação tão
simples do mundo.
Ana é sobrinha e herdeira de
Kovaliévskaia, velha militante comunista que morreu acreditando
na total legitimidade do stalinismo. Já no primeiro parágrafo do
livro, ao descrever a "dama de ferro", Dejnióv dá uma brilhante demonstração de seu talento:
"A velha Kovaliévskaia morreu
em março, em pleno início da primavera. Alguém poderia dizer:
resolveu e morreu, mas a própria
Kovaliévskaia, se viva estivesse,
nunca iria concordar com semelhante afirmação. Membro do
Partido desde 1932, não acreditava em mística. Sua vida passara
como a realidade objetiva que lhe
fora dada em sensações, e a morte
lhe deveria chegar com a mesma
cumplicidade e clareza. "Que viva
o país natal" - cantava Kovaliévskaia com todo o povo -, e o
país vivia, ao passo que ela não aspirava a esse luxo: ela não tinha
tempo, ela lutava."
É evidente, neste pequeno trecho, a crítica mordaz a algumas
das concepções mais cultivadas
pelo stalinismo: o desprezo por
qualquer referência à transcendência, a rígida separação entre
"realidade objetiva" e a "subjetividade", o elogio do patriotismo e
do "povo" como modelo e inspiração, a abnegação missionária
do militante que se recusa a viver.
Na Rússia contemporânea, a reflexão sobre o stalinismo se impõe
como necessidade vital aos que
tentam compreender a própria
história (mais ou menos como, na
Alemanha, a experiência nazista é
tema recorrente, com a diferença
de que, na Rússia, só a perestroika
possibilitou essa reflexão, já no final dos anos 80).
Lucário, personagem central do
livro, faz uma viagem no tempo,
volta aos anos 30, quando encontra o auge do terror stalinista. É o
artista que, de forma muito bem-humorada, se pergunta como isso
tudo foi possível.
É claro que o livro será muito
mais interessante para quem conhece a história russa, mas esta
não é uma condição necessária à
sua leitura. Em muitos trechos, o
leitor, felizmente, é auxiliado pelas notas explicativas de Paulo Bezerra, livre-docente em literatura
russa, que fez um excelente trabalho de tradução.
Divirta-se, portanto, caro leitor!
Em Ritmo de Concerto
In Concert Performance
Autor: Nikolai Dejnióv
Tradução: Paulo Bezerra
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 27,20 (333 págs.)
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