São Paulo, sábado, 15 de julho de 2000


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RESENHA DA SEMANA
Luto literário

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Denis Johnson , 50, vem se impondo desde o sucesso de seu livro de contos "Jesus" Son" (1992; adaptado para o cinema em 99, com Holly Hunter e Dennis Hopper no elenco), como uma das vozes mais originais da literatura americana atual. O que não significa que sua prosa não seja problemática. Uma prosa de vocação visionária, nos rastros de William Blake e Walt Whitman (Johnson também é poeta), só que num tempo em que as visões tendem a ser ridículas.
Johnson escreve nesse limite, insistindo em abrir, nem que seja à força, uma janela para uma visão que já não é possível. É o que torna sua prosa especial, uma mistura de ironia, terror e fantasia prestes a emergir na superfície das experiências mais cotidianas e prosaicas. Um escritor quase religioso (mas sem Deus), nem que seja somente por insistir em procurar, por trás da violência e da obtusidade do mundo, um sentido que, incorporando o bem e o mal, dê uma explicação ao que não tem.
"The Name of the World" (O Nome do Mundo), recém-lançado nos EUA, confirma a excepcionalidade dessa prosa que, embora muitas vezes rebuscada em suas imagens e metáforas, tempera a exaltação visionária com um equilíbrio perfeito entre humor e melancolia.
O narrador é um professor universitário que perdeu mulher e filha recentemente num acidente de automóvel: "Quando digo recentemente, não estou falando como quem pode ter comprado um carro recentemente, ou visto um filme recentemente. Estou falando como se falasse sobre a recente mudança climática da Terra".
É curioso, então, que a narrativa do seu luto seja engendrada progressivamente pela ironia. Quatro anos depois de perder a mulher e a filha pequena, o narrador segue como um morto ambulante e a ironia de sua percepção é a única coisa que o mantém ligado à vida.
A solidão do narrador é tão absoluta que ele chega a entabular conversas imaginárias e nutrir amizades com indivíduos que vê no seu cotidiano sem nunca ter lhes dirigido uma única palavra. As poucas pessoas que encontra de verdade lhe falam de mortos, de pessoas que perderam, como se o luto do narrador tivesse sido projetado no mundo. Um solipsismo em que a ironia é a única fronteira visível que lhe resta para separar a sua imaginação do real.
Refratário aos jogos políticos e às pequenezas do poder na academia, o professor sabe que tem os dias contados na universidade do Meio-Oeste americano, perdida entre comunidades religiosas e milharais, onde leciona história. Vive em suspenso, numa espécie de intervalo afetivo e profissional.
Num dos jantares de professores a que é convidado, conhece uma estudante que atende pelo estranho nome de Flower Cannon e que ele vai reconhecer mais tarde, surpreso, num show de striptease.
Flower é o centro para o qual a narrativa do romance converge: a moral da história. Tem o hobby de colecionar exemplos de caligrafia, que depois guarda em envelopes fechados dentro de uma caixa. Faz parte do seu projeto artístico. Ela pede ao professor que escreva uma frase para a sua coleção. E ele, inadvertidamente, escreve: "o nome do mundo".
"Queria poder ver as frases que os outros escreveram. Estava certo de que ela levava cada um de nós a um ponto em que deixávamos vazar uma gota de essência -uma coisa delicadamente insana, nada domesticada", diz o narrador.
Flower conta a ele como adotou aquele nome tão estranho depois de passar por uma experiência infantil que soa aterrorizante para quem a escuta, mas que ela relata como se tivesse sido apenas um sonho tranquilo: "O que ligava essas palavras nos lábios de Flower ao acidente que matou a minha família?", se pergunta o narrador.
O que ela lhe revela, com seus atos e suas palavras, é a vida como performance artística e a literatura como relato, documento dessa performance. Mostra que a poesia depende dos olhos de quem lê. E que será somente ao dar um nome ao mundo que o narrador conseguirá por fim consumar o seu luto.


The Name of the World      Autor: Denis Johnson Editora: HarperCollins Quanto: US$ 22 (131 págs.) Onde encomendar: www.amazon.com., www.bn.com



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