São Paulo, segunda-feira, 15 de julho de 2002

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Após longa espera, chega às lojas o novo disco do grupo de rap que consagrou gênero no Brasil

Os sete pecados Racionais


Mano Brown faz sinal de positivo em show no Carandiru, em 1999


ISRAEL DO VALE
EDITOR-ADJUNTO DA ILUSTRADA

XICO SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

A intolerância não vingará. Os inconsequentes vão arder no fogo-cruzado dos infernos sociais, nos labirintos da consciência. A desigualdade calada semeará a insurreição. A ostentação alimentará contraventores. O preconceito de cor ou de bolso verterá a animosidade. A indiferença banalizará a violência. A cobiça e a ganância separarão pais de filhos, farão do rei o réu.
Nostradamus? Pentecostes? Não. Racionais MCs é que dá conta de "sete pecados capitais", não necessariamente os mesmos das tábuas antigas. Ganância. Cobiça. Ostentação. Indiferença. Desigualdade. Preconceito. Intolerância. O resto: crime e castigo.
Eleitos porta-vozes dos moradores dos abismos periféricos antes mesmo da visibilidade que atingiu com o cultuado "Sobrevivendo no Inferno", obra-prima de 1997, o grupo reassume o púlpito. Como diz a prosódia suburbana que vai na contramão do paciente e bíblico Jó: "demorô".
Sexta-feira, 12 de julho de 2002. As Grandes Galerias, templo do balanço e da elegância black do centro nervoso de São Paulo, sacolejam. "Meu Deus, que diabo é isso?", indagam os camelôs sobre o corre-corre, conforme relatado à Folha anteontem pelas tantas testemunhas.
Na surdina, chegavam as caixas com o mais esperado disco da cidade dos últimos dois anos, que já está nas grandes lojas do país com a etiqueta de preço sugerido pelo grupo: R$ 23,90.
Com imagens cada vez mais bíblicas na linguagem dos manos, os "apóstolos" Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay embalam o mais novo sermão que exalta indignação dos que sobrevivem.
"Nada como um Dia Após o Outro Dia", novo capítulo da saga musical rapper ensejado pelos Racionais em CD duplo, não pretende ser um épico religioso, embora evoque com frequência passagens bíblicas.
Mas vinga como a crônica urbana de uma morte anunciada: da mudança de valores, do esgarçamento das fronteiras mentais e geográficas, das trincheiras ilusórias entre o centro e a periferia.
"Eu já vi meu lado bom na UTI", diz Mano Brown na faixa "V.L. parte II". São os perigos e tentações, das mulheres ditas fáceis e do dinheiro, fetiche daquele que ostenta e roda, dança.
O disco ressalta, mais uma vez, a capacidade de um grupo de rap de escrever a súmula do trabalho e os dias. Boletim de ocorrência com a versão da camada de baixo. E com a sofisticação de assonâncias como esta: "Cheiro de pólvora/ eu prefiro rosas".
E o Chevrolet das antigas que rasga o chão batido da periferia, imagem do encarte do CD duplo, toca o lamento de Cassiano. Mais adiante, na curva, Mano Brown emenda versos que rezam: "Seu enterro foi dramático/ como blues antigo".
Difícil dizer, pelas letras, se o álbum nasceu sob o impacto do 11 de setembro, forjado que foi ao longo de quase cinco anos. Mas as questões elementares geradas pelo dia fatídico estão todas lá.
Quem, afinal, dá estofo à fantasia de terrorista? O que transforma uma pessoa comum em uma ameaça à sociedade? Que segurança o dinheiro pode realmente proporcionar? Onde mora o inimigo? O que falta para ele bater à porta? As respostas, com os "sete pecados Racionais" na agulha, estão em um disco que começa com uma alvorada suburbana.
Há um galo e um despertadorzinho paraguaio ao fundo. Um "bença mãe" do tempo em que os homens mantinham esse respeito, obrigação ainda em voga nos sertões.
Como na velha alvorada de Cartola, Mano Brown relata os infortúnios, mas traz também a utopia de um morro feliz. Vale repetir: "Vida louca e cabulosa/ o cheiro é de pólvora/ eu prefiro rosas".


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