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São Paulo, terça-feira, 15 de julho de 2003

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MÚSICA ERUDITA/CRÍTICA

Joshua Bell encena o espetáculo da música

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

O preconceito contra o virtuosismo continua vigorando entre as melhores platéias de música de concerto. Mas quase tudo na sentença acima merece, agora, revisão: virtuosismo, melhores platéias, música de concerto. Um recital como o do violinista Joshua Bell, terça-feira passada no BankBoston, serve de emblema do que pode ser a inteligência musical a favor do espetáculo, e o espetáculo a favor da música.
Quem começa um concerto tocando a "Chaconne" de Bach (1685-1750) já faz erguer 250 pares de sobrancelhas. É uma peça que os outros habitualmente tocam no fim, não no começo. Mas para um músico desse nível, e dessa geração -33 anos-, a lógica do espetáculo mudou.
Se alguém toca a "Chaconne" de saída, como ele, é porque 1) não está lá para brincar nem veio só para exibir suas habilidades; 2) ao mesmo tempo, esbanja habilidades incríveis e faz uso delas com naturalidade e pertinência, justamente no que o repertório tem de mais elevado.
A pergunta três seria: depois disso, o quê? Resposta inesperada: a "Fantasia em Dó Maior", para violino e piano, de Schubert (1797-1828). Quase meia hora de música, um labirinto sonoro, típico dos últimos anos da curtíssima vida do compositor -em que a curtíssima vida se traduz em sabedoria.
Em entrevistas, Bell fala nos violinistas Nathan Milstein e Henryk Szering como modelos. Assim como eles, tem um ideal de expressão direta, mas não agressiva; vai do agudíssimo e pianíssimo mais transcendental aos baixos calorosos e concretos sem perder jamais a continuidade nem forçar dinâmicas. No que foi compreendido e ajudado pelo excelente pianista inglês Simon Mulligan.
Pergunta quatro: e depois disso, então? Intervalo.
Na segunda parte, um programa mais leve. Começando com a blueseira "Sonata nš 2", de Ravel (1875-1937), irmã mais velha, bem mais tímida, do "Concerto em Sol Maior" para piano e orquestra. Depois, dois bis por antecipação: a "Melodia" da ópera "Orfeu e Eurídice" de Gluck (1714-87), que Bell tocou explorando a pura beleza dos agudos de seu Stradivarius; e "La Fille Aux Cheveux de Lin", de Debussy (1862-1918), para mostrar o que pode, o que quer essa melodia.
Finalmente, grande surpresa, a "Fantasia sobre Temas de "Carmen'", de Pablo Sarasate (1844-1908). Surpresa porque é o tipo de peça para qual até pouco tempo a gente torceria o nariz. Do ponto de vista formal, ela se aproxima da salada.
Mas isso seria ouvir Sarasate com ouvidos de Beethoven. O que está em jogo aqui não é o hegeliano "puro jogo das formas". É a música do instrumento, um espetáculo vivo da arte em cena, com todos os elementos da mais alta filosofia travestidos de palhaço e arlequim.
Que Joshua Bell, nessa noite, tenha chegado ao máximo de si na "Fantasia" não diminui seu Bach ou Schubert, nem seu Ravel. Dá a medida, por outro lado, do que pode ser o espetáculo da música, sem concessões, na era da concessão e do espetáculo.


Joshua Bell    
Onde: Espaço Cultural BankBoston (av. dr. Chucri Zaidan, 246, Vila Cordeiro, região oeste, São Paulo; tel. 0/xx/11/ 3081-1911)
Quando: hoje, às 21h
Quanto: R$ 26 (clientes) e R$ 40 (p/ estudantes R$ 20)



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