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MARCELO COELHO
"Bem-Vindos" apresenta utopia contraditória e incoerente
Suécia, 1975 . Numa mesma
casa, convivem uma militante feminista, seu ex-marido, um
casal de vegetarianos radicais,
um filho de banqueiro que adere
a um partido leninista e um gay
-tudo o que pudesse representar
de contestação ao modo de vida
burguês. Experimentam a "vida
em comunidade".
Já nas primeiras cenas do filme
"Bem-Vindos", de Lukas Moodyson, vemos que esse estilo de vida
alternativo tem tudo para se
transformar num inferno. Há discussões intermináveis. Quem deve lavar os pratos que se acumulam na pia? "Eu já lavei." "Aliás,
será que devemos lavar os pratos?
Não é coisa burguesa?" A política
impregna o cotidiano num patrulhamento mútuo e autofágico.
Um casal combina viver uma
relação "aberta": o marido não
irá reclamar se a mulher o trai.
Mas e se isso se tornar constante?
O que acontece quando a mulher
realmente se apaixona por um
outro?
Falando assim, dá impressão de
que "Bem-Vindos" é um filme
conservador, interessado em mostrar que as pessoas são e serão
sempre as mesmas. Além disso,
como é um filme sueco, pode-se
pensar que essas discussões submergem nas profundidades
amargas de um filme de Bergman.
Nada disso. "Bem-Vindos" tem
situações muito engraçadas e,
embora os membros da tal comunidade tenham algo de caricatural, o contraste entre a fragilidade
de seus sentimentos e a pureza de
suas convicções por si só lhes confere humanidade. De certo modo,
a distância com que são tratados
-e com que nós os vemos, depois
do colapso das utopias- produz
mais ternura do que frieza.
Só contei um lado da história.
Se a comunidade alternativa tem
seus problemas e contradições,
piores, muito piores, são os lares
burgueses, que também aparecem no filme. Lukas Moodyson
retrata-os em pleno desalento, em
estado de completa miséria afetiva. Ainda assim sentimos mais
pena do que repugnância ao conhecê-los.
A história de "Bem-Vindos" é
movimentada, explorando todos
os desentendimentos internos da
comunidade alternativa com o
mundo exterior. As coisas se complicam quando a irmã de um
membro da comunidade se muda
para lá com os dois filhos.
Ela é uma dona-de-casa convencional, que foge do lar com as
crianças depois de ter sido espancada pelo marido. Vai parar numa comunidade sem televisão,
onde carne vermelha é proibida e
onde andar pelado é um ato de
contestação política. A dona-de-casa estranha o ambiente, e as
crianças, mais ainda. A menina
de 13 anos e o garoto de 9 sofrem
gozações na escola, têm de comer
gororobas naturais e os próprios
livros infantis que lêem são submetidos a um severo escrutínio
ideológico.
Este artigo está saindo muito
descritivo e detalhista. É que
"Bem-Vindos" apresenta um mosaico de situações, com muitos
personagens, e, cada vez que um
personagem surge, é ele que parece ser o principal. Todos os pontos
de vista são importantes para o
filme, numa espécie de igualitarismo do roteiro.
Aí está, provavelmente, uma
das sutilezas de "Bem-Vindos".
Sem dúvida os problemas da dona-de-casa são terríveis, os conflitos do casal "aberto" também.
Mas fico com a impressão de que
o verdadeiro narrador da história, o personagem que detém o
ponto de vista privilegiado sobre
o que acontece é, na verdade, a
menina de 13 anos, filha da dona-de-casa, que passa emburrada a
maior parte do tempo. Ela é como
que a protagonista "disfarçada"
do filme.
Que importância tem isso? Muita, até para o significado político
de "Bem-Vindos". Estamos acostumados a ver filmes em que os
vilões -objetos da crítica e da
contestação ideológica- são os
pais convencionais, a família careta e repressiva. Os jovens são rebeldes, e essa rebeldia é enaltecida.
O filme de Lukas Moodyson é
provavelmente um dos primeiros
em que quem toma a palavra é a
geração "pós-utópica". A que
contesta ou ridiculariza os valores daqueles que foram jovens nas
décadas de 60 e 70.
O que se critica em "Bem-Vindos"? Talvez o purismo dos hábitos meio hippies e meio socialistas
daquela geração. Uma certa hipocrisia em se achar, pela simples
convicção ideológica, acima de
fraquezas humanas, como o ciúme, a agressividade, a inveja e o
ressentimento. Uma insistência
inútil em lutar contra os meios de
comunicação de massa e contra a
sociedade de consumo.
Mas aí o filme seria raso demais. Quando vemos personagens com idéias tão simpáticas
agredindo-se entre quatro paredes, talvez a maior crítica que o
filme sugere está nesse aspecto de
isolamento e de segregação que
foram assumindo os movimentos
contestatórios depois de 68.
É como se jovens de classe média, revoltando-se contra a repressão doméstica e a estreiteza
dos pais, tivessem tentado uma
revolução igualmente doméstica,
circunscrita à rotina cotidiana, à
pia da cozinha e ao leito conjugal.
A comunidade libertária, fechada em si mesma, parece oscilar
entre o ideal e o "huis clos" sartreano. Quanto mais felizes forem
seus membros, mais parece presente a ameaça do fascismo, vinda da inveja e da incompreensão
de quem está fora. Quanto mais
infelizes e discordantes, mais parece que nada vale a pena.
Mas a história de "Bem-Vindos" -o título original é "Todos
Juntos"- aposta numa saída para esse dilema. Até indivíduos
conservadores, broncos e despolitizados poderiam se integrar a
um estilo de vida alternativo. E
mesmo os vegetarianos mais radicais podem ganhar se se mostrarem mais tolerantes e comerem salsichas de vez em quando.
O filme é contemporâneo da
aliança entre o Partido Verde e a
social-democracia alemã. É contemporâneo também dos movimentos sociais antiglobalização,
que juntam desde nacionalistas
de direita e punks a hippies e petistas. Num plano ainda individual, sua história apresenta uma
utopia multifacetada, contraditória, incoerente. É o que sobrou, é o
que temos.
"Bem-Vindos" também pode
ser visto como um filme sem tantas mensagens assim. O seu realismo, como todo bom realismo,
mostra personagens tão mesclados de fraqueza e de virtude, de
condicionamentos e de imprevistos, que não se enquadram em
nenhum recado político, mas que
se enquadram, modestamente,
nas contradições de seu tempo.
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