São Paulo, quarta-feira, 15 de agosto de 2001

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MARCELO COELHO

"Bem-Vindos" apresenta utopia contraditória e incoerente

Suécia, 1975 . Numa mesma casa, convivem uma militante feminista, seu ex-marido, um casal de vegetarianos radicais, um filho de banqueiro que adere a um partido leninista e um gay -tudo o que pudesse representar de contestação ao modo de vida burguês. Experimentam a "vida em comunidade".
Já nas primeiras cenas do filme "Bem-Vindos", de Lukas Moodyson, vemos que esse estilo de vida alternativo tem tudo para se transformar num inferno. Há discussões intermináveis. Quem deve lavar os pratos que se acumulam na pia? "Eu já lavei." "Aliás, será que devemos lavar os pratos? Não é coisa burguesa?" A política impregna o cotidiano num patrulhamento mútuo e autofágico.
Um casal combina viver uma relação "aberta": o marido não irá reclamar se a mulher o trai. Mas e se isso se tornar constante? O que acontece quando a mulher realmente se apaixona por um outro?
Falando assim, dá impressão de que "Bem-Vindos" é um filme conservador, interessado em mostrar que as pessoas são e serão sempre as mesmas. Além disso, como é um filme sueco, pode-se pensar que essas discussões submergem nas profundidades amargas de um filme de Bergman.
Nada disso. "Bem-Vindos" tem situações muito engraçadas e, embora os membros da tal comunidade tenham algo de caricatural, o contraste entre a fragilidade de seus sentimentos e a pureza de suas convicções por si só lhes confere humanidade. De certo modo, a distância com que são tratados -e com que nós os vemos, depois do colapso das utopias- produz mais ternura do que frieza.
Só contei um lado da história. Se a comunidade alternativa tem seus problemas e contradições, piores, muito piores, são os lares burgueses, que também aparecem no filme. Lukas Moodyson retrata-os em pleno desalento, em estado de completa miséria afetiva. Ainda assim sentimos mais pena do que repugnância ao conhecê-los.
A história de "Bem-Vindos" é movimentada, explorando todos os desentendimentos internos da comunidade alternativa com o mundo exterior. As coisas se complicam quando a irmã de um membro da comunidade se muda para lá com os dois filhos.
Ela é uma dona-de-casa convencional, que foge do lar com as crianças depois de ter sido espancada pelo marido. Vai parar numa comunidade sem televisão, onde carne vermelha é proibida e onde andar pelado é um ato de contestação política. A dona-de-casa estranha o ambiente, e as crianças, mais ainda. A menina de 13 anos e o garoto de 9 sofrem gozações na escola, têm de comer gororobas naturais e os próprios livros infantis que lêem são submetidos a um severo escrutínio ideológico.
Este artigo está saindo muito descritivo e detalhista. É que "Bem-Vindos" apresenta um mosaico de situações, com muitos personagens, e, cada vez que um personagem surge, é ele que parece ser o principal. Todos os pontos de vista são importantes para o filme, numa espécie de igualitarismo do roteiro.
Aí está, provavelmente, uma das sutilezas de "Bem-Vindos". Sem dúvida os problemas da dona-de-casa são terríveis, os conflitos do casal "aberto" também. Mas fico com a impressão de que o verdadeiro narrador da história, o personagem que detém o ponto de vista privilegiado sobre o que acontece é, na verdade, a menina de 13 anos, filha da dona-de-casa, que passa emburrada a maior parte do tempo. Ela é como que a protagonista "disfarçada" do filme.
Que importância tem isso? Muita, até para o significado político de "Bem-Vindos". Estamos acostumados a ver filmes em que os vilões -objetos da crítica e da contestação ideológica- são os pais convencionais, a família careta e repressiva. Os jovens são rebeldes, e essa rebeldia é enaltecida.
O filme de Lukas Moodyson é provavelmente um dos primeiros em que quem toma a palavra é a geração "pós-utópica". A que contesta ou ridiculariza os valores daqueles que foram jovens nas décadas de 60 e 70.
O que se critica em "Bem-Vindos"? Talvez o purismo dos hábitos meio hippies e meio socialistas daquela geração. Uma certa hipocrisia em se achar, pela simples convicção ideológica, acima de fraquezas humanas, como o ciúme, a agressividade, a inveja e o ressentimento. Uma insistência inútil em lutar contra os meios de comunicação de massa e contra a sociedade de consumo.
Mas aí o filme seria raso demais. Quando vemos personagens com idéias tão simpáticas agredindo-se entre quatro paredes, talvez a maior crítica que o filme sugere está nesse aspecto de isolamento e de segregação que foram assumindo os movimentos contestatórios depois de 68.
É como se jovens de classe média, revoltando-se contra a repressão doméstica e a estreiteza dos pais, tivessem tentado uma revolução igualmente doméstica, circunscrita à rotina cotidiana, à pia da cozinha e ao leito conjugal.
A comunidade libertária, fechada em si mesma, parece oscilar entre o ideal e o "huis clos" sartreano. Quanto mais felizes forem seus membros, mais parece presente a ameaça do fascismo, vinda da inveja e da incompreensão de quem está fora. Quanto mais infelizes e discordantes, mais parece que nada vale a pena.
Mas a história de "Bem-Vindos" -o título original é "Todos Juntos"- aposta numa saída para esse dilema. Até indivíduos conservadores, broncos e despolitizados poderiam se integrar a um estilo de vida alternativo. E mesmo os vegetarianos mais radicais podem ganhar se se mostrarem mais tolerantes e comerem salsichas de vez em quando.
O filme é contemporâneo da aliança entre o Partido Verde e a social-democracia alemã. É contemporâneo também dos movimentos sociais antiglobalização, que juntam desde nacionalistas de direita e punks a hippies e petistas. Num plano ainda individual, sua história apresenta uma utopia multifacetada, contraditória, incoerente. É o que sobrou, é o que temos.
"Bem-Vindos" também pode ser visto como um filme sem tantas mensagens assim. O seu realismo, como todo bom realismo, mostra personagens tão mesclados de fraqueza e de virtude, de condicionamentos e de imprevistos, que não se enquadram em nenhum recado político, mas que se enquadram, modestamente, nas contradições de seu tempo.



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