São Paulo, quinta-feira, 15 de agosto de 2002

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GASTRONOMIA

É hora do almoço, que hora tão feliz...

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Cheguei uma hora adiantada para o almoço no restaurante estreito como um corredor de trem, bem arranjado em vermelhos e bromélias.
A menina oriental, de coturnos, calça preta pelo tornozelo, lenço amarrado no pescoço com arte japonesa, me leva até a mesa, olhar insuportavelmente arrogante. Na moda, vestida para matar.
A garçonete que se aproxima suavemente é feinha e tem bigodes de gato que tremem em alegria discreta quando se agradece a coca light com gelo e limão.
Uma mulher de 50 anos bem conservados, na mesa em frente, importa-se muito por estar sozinha. À espera de alguém, talvez, olha muito para a porta. Já foi bonita, guarda traços e ainda sonha à noite, quiçá de dia também, com o homem que irá levá-la de volta à categoria de quatrocentona, um pouco gasta pela falta de dinheiro que atrapalha um bocado o status. É eventora, com certeza, seja lá o que a palavra significa, e trabalha numa sala do mezanino, com um bambu mossô pendendo sobre a mesa e três livros de etiqueta na estante.
Quando a amiga chega, se transforma. O comedor solitário é um ser interessante. A meia hora de solidão o despe de certezas, traz à baila inseguranças. Com a entrada da parceira o puzzle se resolve, as pedras se ajeitam no tabuleiro, a vida sépia cobra cores. A amiga é pequena, tailleur escuro, óculos de intelectual, como se tivesse dentro de si um poço de sabedoria de uma certa profundidade, cheio de réguas, números, planejamentos. Um incongruente brinco colorido, um brinco só, brinca sobre o pocinho inteligente.
A quatrocentona tem mãos fortes de gerações de mulheres fazendeiras, chicote em punho a lidar com tachos de goiabada enquanto o marido bandeirava. É exigente, sabe das coisas, quer a salada sem palmito e o frango sem pele, pequenas implicâncias.
Mais para a frente companheiros de escritório, homem e mulher. É a primeira vez que almoçam juntos e sozinhos, dá para ver, e há meia hora conversam sobre filhos, reunião de pais, a educação das crianças, há que se impor limites. Não foram lá para esse papo, mas nele se grudaram como o macaco no piche. O assunto mingua perigosamente, baixam a cabeça sobre o salmão grelhado com ervilhas tortas.
O restaurante começa a entrar no pique e zoar, mas é impossível deixar de escutar o péssimo inglês dos brasileiros da mesa grande, que lutam por uns dólares e uma representação comercial. Uma palavra errada pode fazer ruir o castelo de esperanças. O mais humilde dos lutadores desiste de repente, se aquieta de todo numa azia terminal, e no rosto podemos ler uma caspa premonitória quase a cair sobre seus ombros, no futuro terno surradinho.
A quatrocentona reacende o olhar com a entrada de um ex-bonitão, queimado de sol, esportivo, forte, que pode vir a ser sua salvação, por que não?
O homem e a mulher teimam na dor de garganta dos meninos, o sarampo, pavor de sarampo, é sempre melhor chamar dois médicos, com certeza.
Nota-se um tom gay no bar já cheio, publicitários e executivos, bem vestidos, uns com roupas mais soltas, um certo à vontade, outros mais tensos em ternos e gravatas. Bebem e riem.
Acabo meu pato com risoto, nada mau, e saio de mansinho, cuidadosa, evitando quebrar projetos e vidas dos outros, vidente pé-de-chinelo, barriga cheia de pato.

ninahort@uol.com.br



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