São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

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Amor em tempos de guerra

Jefferson Coppola/Folha Imagem
Ensaio da ópera "Don Carlo", de Verdi, que será encenada em SP sob a batuta de Ira Levin e com direção cênica de Gabriel Villela


Com regência de Ira Levin, a ópera "Don Carlo", de Verdi, estréia na quarta em SP

MARIA CRISTINA FRIAS
DA REPORTAGEM LOCAL

"O rei sem barba? E sem coroa? É a primeira vez que faço Filipe 2º assim", exclamou o baixo, a mais grave das vozes masculinas, Julian Konstantinov. Era o primeiro dia do solista búlgaro nos ensaios da ópera "Don Carlo", de Giuseppe Verdi (1813-1901), no Teatro Municipal de São Paulo, a duas semanas da estréia, marcada para a próxima quarta-feira.
Para Konstantinov, que já nem se lembra mais de quantas montagens internacionais de "Don Carlo" participou, parece difícil entrar no clima da produção. Outras surpresas viriam.
Sete cachorros, policiais em cena, além de um belo, porém, exótico figurino. Em vez de coroa, capacete, para evocar o clima bélico da época. Konstantinov tirou-o da cabeça e, ao levantar-se, derrubou o capacete no chão.
Um novo adereço foi providenciado, não só para o rei, como para os outros solistas, que estavam "desconfortáveis", segundo o diretor cênico Gabriel Villela. Caíram os capacetes, mas ficou o clima de guerra. Do enfrentamento nos bastidores do Municipal à história que a ópera mostra.
São pelo menos três histórias: a dos personagens da Espanha do século 16, a escrita por Schiller (1759-1805), em 1787, e a de Verdi, que estreou em Paris, em 1867, e que segue de perto a versão romântica do poeta alemão.
Para acabar com a guerra entre França e Espanha, é acertado o casamento do príncipe espanhol com a filha do rei francês. Mas o acordo é mudado, a princesa casa-se com o pai de Carlo, Filipe 2º, e se torna rainha da Espanha.
"É a história de amor nos tempos da cólera, tempos de guerra, como temos hoje. Só que não há casamento mais que una Ocidente e Oriente, Sharon e Arafat ", diz.
Da falta de dinheiro para a montagem orçada em R$ 900 mil- "mas que deve ficar em R$ 700 mil", segundo a diretora do Municipal , Lúcia Camargo- ao diretor que foi parar no hospital, a produção equilibra-se na curta e intensa fase de ensaios. Mais de 300 pessoas trabalham para colocar esse Verdi de pé- são 115 artistas no palco- em menos de três semanas de ensaios.
É a primeira vez que o Municipal apresenta uma montagem brasileira de "Don Carlo". O príncipe espanhol será cantado pelo tenor mexicano Octavio Arévalo, a rainha, pela soprano gaúcha Laura de Souza, além de Konstantinov, como o rei.
A Orquestra Sinfônica Municipal fez apenas quatro dos cinco ensaios previstos com o maestro norte-americano Ira Levin. Foram dispensados do último.
"A orquestra está muito melhor", segundo o regente e diretor artístico do Teatro Municipal, que trabalha "como um demônio, um tarado", arrisca em português.
Ainda seriam mais quatro ensaios com o restante do elenco.
"É o suficiente, o que se faz nos Estados Unidos", diz o regente.
O Coral Lírico começou antes. Quando o diretor chegou, as 97 vozes já enchiam a bela cúpula do Municipal com Verdi. Ensaiam todas as manhãs, das 9h às 12h30, religiosamente. Às 12h29, alguém já aponta para o relógio.
O grupo tem idades entre 25 e 70 anos. Há quem chegue de terno, quem entre com uma sacola de feira. Uma cantarola a ópera sozinha daqui, outro entoa um "oi" de lá.
Com os solistas, o diretor insiste nos gestos. A mão de Don Carlo ao desmaiar, o andar da rainha. A soprano acha difícil não jogar os quadris, ao recuar na cena, mas não reclama.
"Ele é contra a padronização dos gestos. Sinto uma condução muito segura", elogia.
"Não faz o meu gênero. Para ser moderno tem de ter sentido", diz Konstantinov, o rei, que não quer comentar mais sobre a produção. "Ainda não estamos prontos."
Já o tenor Arévalo diz ter "ódio de montagens tradicionais. A ópera avança, mudou até musicalmente de 20 anos para cá."
Com a entrada de Levin na cúpula, o coro se apruma, solistas soltam a voz. No último ensaio antes do palco, um descompasso entre um pianista e solistas.
O maestro pede que ele repita o trecho. Pede de novo. Diz algo ao pianista em alemão. Com as duas mãos em seus ombros, afasta-o do banco. Toma posse do piano.
Segue-se a ária final da rainha, lindamente acompanhada pelo maestro pianista, que, dali mesmo orienta a todos.
Villela costuma entrar logo com os figurinos nos ensaios de suas peças de teatro. Nos trajes da ópera foram usadas mais de mil penas de galinha d" angola, em tramas feitas em teares manuais que mesclam seda e miçangas a fios rústicos. Um restaurador de igrejas veio de Minas para aplicar folhas de ouro em alguns dos trajes.
"O ator percebe que com aquela roupa não dá para atuar com o naturalismo das novelas ou dos clichês da ópera."
Em "Don Carlo", não deu. O pagamento da produção atrasou, como de costume. Saíram apenas 30% do total.
"Se não fossem os esforços da diretora, a ópera não saía. Tive de emprestar dinheiro e soube que só receberei dois meses após a estréia", diz Villela.
Camargo diz que isso sempre aconteceu no Municipal. "Só depois da estréia sai a nota e o serviço é pago. Às vezes, não há dinheiro e temos de pedir aos patronos."
Uma semana antes da estréia, o diretor foi parar no hospital, com fechamento da glote. Apesar da recomendação médica de 15 dias de repouso, no dia seguinte, já circulava pelo teatro com uma máscara "para não contaminar os cantores" e providenciava o concerto do figurino do rei que aparecera rasgado.
Logo de início, Villela bateu de frente com o maestro. Queria a montagem da ópera em cinco atos. Levin optou pela versão italiana, que suprime o primeiro ato, o do encontro dos dois príncipes em Fontainebleau.
O maestro lembra que o próprio Verdi fez a versão mais curta. "A maioria das casas não faz mais essas enormes e caras produções", diz Levin.
Cães e companhia não causam estranhamento ao maestro, que tem 68 óperas no currículo.
"Há produções para chocar, com cenas sem sentido - o que não acontece em Gabriel. Prefiro produções como esta. Não gosto de DVDs com produções do Metropolitan [de Nova York], com artistas estáticos."
O tenor Arévalo afirma que depois de ter vivido Don Carlo três vezes, poderia ser mais confortável fazer o "seu" Don Carlo, construído ao longo dessas produções.
"O cantor é preguiçoso", diz.


DON CARLO. Com: Orquestra Sinfônica Municipal. Regência: Ira Levin. Direção cênica: Gabriel Villela. Quando: 19/8, 21/8, 24/8 e 27/8, às 20h30 e 29/8, às 17h, no Teatro Municipal (pça. Ramos de Azevedo, tel.: 0/xx/11/222-8698). Quanto: de R$ 30 a R$ 100.


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