São Paulo, sexta, 15 de agosto de 1997.



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Julio Medaglia reúne músicos do Brasil e do Leste europeu em orquestra de formação compacta
Amazônia ganha filarmônica própria

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

O maestro Julio Medaglia, 59, está a ponto de concretizar, no Teatro Amazonas, algo muito próximo do sonho megalômano de Fitzcarraldo, o personagem de Werner Herzog que, em filme de 1981, idealizou plantar uma companhia prestigiosa de ópera bem no meio da floresta tropical. Medaglia está criando e dirigirá a Amazonas Filarmônica, com os primeiros ensaios já marcados para o início de setembro. Será uma formação compacta, como as que existiam no final do século 18. Terá 44 músicos, em lugar dos mais de 100 de uma grande sinfônica. Apenas 11 deles são brasileiros. Os 33 restantes foram recrutados no Uruguai e na Europa, com predominância de 13 originários da Belarus e 10 da Bulgária. A orquestra de tamanho "bethoveniano" traz 31 instrumentos de corda e duplas de flautas, oboés, clarinetes e outros sopros. Será financiada pelo governo do Estado, ao custo de R$ 2 milhões ao ano. Segue entrevista com Medaglia.

Folha - Qual a relação existente entre um belo teatro e uma excelente orquestra, já que o Teatro Amazonas nunca possuiu uma sinfônica permanente?
Julio Medaglia -
Há em Manaus aquele delírio que é o sofisticado teatro em estilo art-déco, que durante quase um século permaneceu abandonado. Foi depósito de gasolina, local de competições esportivas. Coisas que em nada lembravam a intensa atividade cultural do início do século, antes que terminasse o ciclo da borracha. O teatro foi restaurado em 92. Mas era um teatro "mudo". Não tinha música.
Folha - Qual a vantagem da predominância de instrumentistas da Europa do Leste?
Medaglia -
Eles têm uma excelente tradição de cordas, que permite uma clareza de sonoridade, a mão esquerda muito bem definida, cristalina. É o poder da escola russa. Há por lá excelentes músicos ganhando muito pouco e dispostos a emigrar. Trouxemos gente da Ópera de Sófia e da Sinfônica de Minsk, de onde virá o primeiro-violino, Regina Sarkisova.
Folha - Como é que surgiu a idéia dessa nova orquestra?
Julio Medaglia -
Foi uma idéia do atual governador (Amazonino Mendes), que também governava o Amazonas quando da restauração do teatro.
O projeto foi discutido entre eu e ele nas duas oportunidades em que me apresentei, em 95 e em 97, regendo orquestras na cidade. Trata-se, em suma, de se fazer uma orquestra que reflita o carisma internacional da Amazônia.
Folha - Como foram selecionados os músicos?
Medaglia -
Por meio de um concurso. Primeiro, entre músicos brasileiros, que geralmente hesitavam em se transferir para Manaus porque perderiam outras fontes de renda que têm, no eixo Rio-São Paulo, com gravações ou com empregos em mais de uma orquestra.
Foram recrutados 11 músicos. Os restantes foram escolhidos por mim e por mais três outros professores, em audiências de concurso na Rússia, Belarus, República Tcheca, França e Uruguai.
Folha - Quanto o governo local pagará para cada um deles?
Medaglia -
Em torno de R$ 2.400 mensais. A vida é mais barata em Manaus, e o governo pretende dar um terreno para a construção de uma "vila de artistas", com casas financiadas. É uma maneira de levar os músicos a estabelecer vínculos com a cidade.
Folha - Eles serão funcionários da Secretaria Estadual da Cultura?
Medaglia -
Não. Criamos uma associação sem fins lucrativos. O governo põe o dinheiro e desaparece do mapa. Os músicos serão contratados, de início, por um ano, mas com uma cláusula que nos permite rescindir o contrato em caso de desempenho insatisfatório. A dotação anual da orquestra será próxima de R$ 2 milhões.
Folha - Como garantir a continuidade da orquestra sem, como contrapartida, a continuidade política do governo que a criou?
Medaglia -
No Brasil tem-se, em geral, orquestras públicas. O que procuraremos fazer será algo próximo da Fundação Padre Anchieta, de São Paulo, ou do Hospital Sara Kubitschek, de Brasília, que funcionam sem ingerência oficial. Num segundo momento, quando a orquestra já estiver com sua sonoridade bem trabalhada, o governador do Amazonas pretende estimular as empresas da Suframa (Zona Franca de Manaus) a participar do projeto.
Folha - Qual será o repertório?
Medaglia -
De início, todo Beethoven, todo Mozart, todo Haydn, além de peças para cordas românticas. Mas não é uma formação para executar Mahler, Brahms ou Richard Strauss, que exigem orquestras maiores.
Folha - Quando acontecem os primeiros ensaios?
Medaglia -
Os músicos estarão chegando até o fim de agosto. Começaremos a ensaiar no início de setembro.
Folha - Montar em plena Amazônia uma orquestra de tamanha excelência em potencial não seria uma versão musical do sonho tão bem retratado no cinema por Werner Herzog, em "Fitzcarraldo"?
Medaglia -
Talvez... Mas o fato é que será uma orquestra com padrão disciplinar e postura diferenciados. Os músicos não poderão conversar uns com os outros quando entrarem no palco. Terão roupa própria, especialmente desenhada. O teatro sofrerá um tratamento acústico e ganhará cenário para que o palco seja o prolongamento de sua arquitetura.



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