São Paulo, sábado, 15 de agosto de 1998

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Obra converge mal físico e mal da alma

especial para a Folha

A inveja tem péssima reputação. É dissimulada, triste, inconfessável. Secreta, prefere ocultar-se. Perigosa, lança olhares de soslaio. Arruda, sal grosso e olho-de-boi são algumas das armas usadas contra ela. Os gregos a conheciam, os romanos também. Na "Bíblia", é origem do mal. De Satã contra Deus. De Caim contra Abel.
Em "Mal Secreto", de Zuenir Ventura, a inveja é sobretudo o sentimento do outro. E pode matar, em mais de um contexto.
Zuenir afirma, em advertência, que a obra não é um romance, mas um making of. Seria como uma construção de "estrutura aparente", na qual percebe-se as imperfeições. Ao contrário de uma reportagem, feita de resultados, o que interessa aqui é o próprio trajeto. O caminho faz o livro. Zuenir entrevistou sacerdotes, psicanalistas, pais e mães-de-santo. Fez pesquisa nacional sobre a inveja. Foi a Tomás de Aquino, Melanie Klein, Francis Bacon.
Em dado momento, o autor é acometido de uma enfermidade. Baqueia, interrompe o livro, pensa em desistir. Mas o making of é completo, e a doença se incorpora ao enredo. Vira a vilã da história.
A doença é o câncer. Há inúmeras convergências entre esse mal físico e o mal da alma, a inveja. Etimologicamente, câncer é o caranguejo, bicho que se esconde, como a inveja. Que nem ela, também tem graus: o de Zuenir é um maligno brando. Há quase um paralelismo temporal entre o início das pesquisas sobre a inveja e os primeiros sintomas. E ainda tem aquele olhar esquisito lançado por uma mãe-de-santo contra Zuenir. O câncer é a inveja, o mal dentro do autor. É o outro, o "morador clandestino", instalado nele.
A suspeita, as consultas, os primeiros exames, a ultra-sonografia, as cirurgias, as biópsias (cujos resultados são incluídos no livro), a recidiva, o tratamento com BCG: tudo é retratado galhardamente, sem lamúrias. Às vezes, há graça, como no episódio em que a enfermeira o chama no hospital: "Senhora Zuenir Ventura!". E o autor retruca, entre bravo e envergonhado: "A senhora sou eu, pô".
De início imagina-se que são dois os pólipos. Depois, descobre-se que são três. Esses três intrusos, vetores pelos quais a inveja aloja-se no corpo do autor, podem ser encontrados em um segundo plano narrativo.
Pois há em "Mal Secreto" outro caso de inveja. Trata-se de uma intriga bem azeitada, de amor e morte, com elementos de história policial, na qual o autor vira personagem e desvenda a trama.
A protagonista agora é Kátia, adotada por uma mãe-de-santo. Quando criança, seu barraco fora tragado por inundação, mas a garota salvou-se. Zuenir resume sua trajetória com perfeição: "a submergente que virou emergente".
Os dois outros dois pólos (ou pólipos?) são Fernando e Ivan. Kátia ama Fernando, mas, por despeito, acaba ficando com Ivan quando o primeiro a troca por uma "perua". Ivan é o Iago e inveja Fernando. Quando o livro começa, sabe-se que Fernando morrera em circunstâncias estranhas. É a investigação desse caso misterioso, em que se misturam poções mágicas, venenos, dinheiro e principalmente a mal-afamada inveja, que dá charme à obra.
Partindo-se da excelente definição de Francis Bacon da inveja -a "ejaculação" do olho-, esperaríamos achar um entrecho formado por olhares semicerrados e fitadas escancaradas de olho gordo, e há bons exemplos disso na obra.
Mas o que lhe define melhor é o grande número de vozes que parecem surgir ao acaso: o laudo da biópsia; o falar estropiado do caboclo Tranca Rua; o anônimo resultado da pesquisa; a família; os amigos -Nelsinho Motta, Constanza Pascolato, Ziraldo-; os emergentes, com visita em casa de Vera Loyola; os literatos -Gore Vidal, Nelson Rodrigues, Chaucer- e uma infinidade de outras.
Tudo contribui para formar um arcabouço de falares, opiniões, experiências pessoais, histórias, reflexões, angústias -o real e o inventado de mistura. Com o Rio como pano de fundo e a inveja como mote, ele vai percorrendo e ao mesmo tempo formando esse tenaz edifício, reproduzindo na ficção a multiplicação involuntária que se dera dentro de si. Neste corajoso livro de Zuenir, o eu também dá lugar aos outros. (MP)

Livro: Mal Secreto
Autor: Zuenir Ventura
Coleção: Plenos Pecados
Lançamento: Objetiva Quanto: R$ 22 (265 págs.)



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