|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Obra converge mal físico e mal da alma
especial para a Folha
A inveja tem péssima reputação.
É dissimulada, triste, inconfessável. Secreta, prefere ocultar-se. Perigosa, lança olhares de soslaio.
Arruda, sal grosso e olho-de-boi
são algumas das armas usadas
contra ela. Os gregos a conheciam,
os romanos também. Na "Bíblia", é origem do mal. De Satã
contra Deus. De Caim contra Abel.
Em "Mal Secreto", de Zuenir
Ventura, a inveja é sobretudo o
sentimento do outro. E pode matar, em mais de um contexto.
Zuenir afirma, em advertência,
que a obra não é um romance,
mas um making of. Seria como
uma construção de "estrutura
aparente", na qual percebe-se as
imperfeições. Ao contrário de
uma reportagem, feita de resultados, o que interessa aqui é o próprio trajeto. O caminho faz o livro.
Zuenir entrevistou sacerdotes,
psicanalistas, pais e mães-de-santo. Fez pesquisa nacional sobre a
inveja. Foi a Tomás de Aquino,
Melanie Klein, Francis Bacon.
Em dado momento, o autor é
acometido de uma enfermidade.
Baqueia, interrompe o livro, pensa em desistir. Mas o making of é
completo, e a doença se incorpora
ao enredo. Vira a vilã da história.
A doença é o câncer. Há inúmeras convergências entre esse mal
físico e o mal da alma, a inveja.
Etimologicamente, câncer é o caranguejo, bicho que se esconde,
como a inveja. Que nem ela, também tem graus: o de Zuenir é um
maligno brando. Há quase um paralelismo temporal entre o início
das pesquisas sobre a inveja e os
primeiros sintomas. E ainda tem
aquele olhar esquisito lançado por
uma mãe-de-santo contra Zuenir.
O câncer é a inveja, o mal dentro
do autor. É o outro, o "morador
clandestino", instalado nele.
A suspeita, as consultas, os primeiros exames, a ultra-sonografia, as cirurgias, as biópsias (cujos
resultados são incluídos no livro),
a recidiva, o tratamento com BCG:
tudo é retratado galhardamente,
sem lamúrias. Às vezes, há graça,
como no episódio em que a enfermeira o chama no hospital: "Senhora Zuenir Ventura!". E o autor retruca, entre bravo e envergonhado: "A senhora sou eu, pô".
De início imagina-se que são
dois os pólipos. Depois, descobre-se que são três. Esses três intrusos, vetores pelos quais a inveja
aloja-se no corpo do autor, podem
ser encontrados em um segundo
plano narrativo.
Pois há em "Mal Secreto" outro
caso de inveja. Trata-se de uma intriga bem azeitada, de amor e
morte, com elementos de história
policial, na qual o autor vira personagem e desvenda a trama.
A protagonista agora é Kátia,
adotada por uma mãe-de-santo.
Quando criança, seu barraco fora
tragado por inundação, mas a garota salvou-se. Zuenir resume sua
trajetória com perfeição: "a submergente que virou emergente".
Os dois outros dois pólos (ou
pólipos?) são Fernando e Ivan. Kátia ama Fernando, mas, por despeito, acaba ficando com Ivan
quando o primeiro a troca por
uma "perua". Ivan é o Iago e inveja Fernando. Quando o livro começa, sabe-se que Fernando morrera em circunstâncias estranhas.
É a investigação desse caso misterioso, em que se misturam poções
mágicas, venenos, dinheiro e
principalmente a mal-afamada inveja, que dá charme à obra.
Partindo-se da excelente definição de Francis Bacon da inveja -a
"ejaculação" do olho-, esperaríamos achar um entrecho formado por olhares semicerrados e fitadas escancaradas de olho gordo, e
há bons exemplos disso na obra.
Mas o que lhe define melhor é o
grande número de vozes que parecem surgir ao acaso: o laudo da
biópsia; o falar estropiado do caboclo Tranca Rua; o anônimo resultado da pesquisa; a família; os
amigos -Nelsinho Motta, Constanza Pascolato, Ziraldo-; os
emergentes, com visita em casa de
Vera Loyola; os literatos -Gore
Vidal, Nelson Rodrigues, Chaucer- e uma infinidade de outras.
Tudo contribui para formar um
arcabouço de falares, opiniões, experiências pessoais, histórias, reflexões, angústias -o real e o inventado de mistura. Com o Rio
como pano de fundo e a inveja como mote, ele vai percorrendo e ao
mesmo tempo formando esse tenaz edifício, reproduzindo na ficção a multiplicação involuntária
que se dera dentro de si. Neste corajoso livro de Zuenir, o eu também dá lugar aos outros.
(MP)
Livro: Mal Secreto
Autor: Zuenir Ventura
Coleção: Plenos Pecados
Lançamento: Objetiva
Quanto: R$ 22 (265 págs.)
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|