São Paulo, sábado, 15 de agosto de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Escritores e encomendas

HAROLDO CERAVOLO SEREZA
da Redação

"História escrita sob encomenda e sem inspiração, sem pés nem cabeça, digna dos tempos de viver que vivemos, institucionalizados e redimidos do pecado universal", assim começa a dedicatória de Jorge Amado que antecede o conto "As Mortes e o Triunfo de Rosalinda", para o livro "Os Dez Mandamentos" (Civilização Brasileira, 1965, esgotado).
Incumbido de escrever sobre o quinto mandamento, o "não matarás", Amado preferiu falar sobre política. E Rosalinda, a que não morre (no conto), é uma corajosa representação de um sonho socialista que a violência do regime militar sufocava.
Se o conto tem problemas, como o próprio Amado reconhece, sua dedicatória coloca uma questão importante: é possível escrever sob encomenda?
Os textos de "Os Dez Mandamentos" (filho de uma edição de sucesso de "Os Sete Pecados Capitais", de 1964, reeditado no ano passado com um conto de Fausto Wolf substituindo um de Guimarães Rosa) têm qualidade oscilante, em que se destaca "Sobre Todas as Coisas", de Carlos Heitor Cony.
Nele, Cony aproxima dois padres, Lucas e Mateus, um prático, o outro, erudito.
O primeiro acaba tendo problemas com a cúpula da igreja, o outro não consegue chegar a uma conclusão sobre o significado do primeiro mandamento, "amar a Deus sobre todas as coisas".
Mas nem só de sugestões divinas vivem os escritores. Gil Vicente (1465-1537), com sua "Farsa de Inês Pereira", criou um clássico a partir do dito popular "prefiro asno que me carregue a cavalo que me derrube".
E o que há de comum entre Gil Vicente e Jorge Amado, ou melhor, entre o dito do primeiro e o mandamento do segundo?
Há temas de domínio popular, resultantes seja de um convívio profano, do dia-a-dia, seja de uma interação sagrada, uma iniciação literária que se dá na igreja, a partir das leituras bíblicas.
O resultado é que, de temas populares, fez-se uma literatura popular. Isso responde à pergunta inicial, ou seja, é possível, sim, escrever sob encomenda.
Mas coloca outras duas, a saber: 1. que encomendas pode um escritor aceitar? 2. quem pode aceitar uma?



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.