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3x4 INTELECTUAIS
Santo Agostinho, um pré-medieval no pós-moderno?
MARIO SERGIO CORTELLA
especial para a Folha
Os tempos da aclamada pós-modernidade apontam para a
ressurreição das turbulências de
uma subjetividade atormentada;
a exuberância tecnológica (privilégio ainda restrito) não resolveu
a angústia provocada pelo questionamento sobre a individualidade (o que sou eu?), sobre a origem dos males (por que tudo isso?), sobre a felicidade (onde estará?). A exclusividade da razão
triunfante parece não bastar; não
explica tudo nem alivia sempre.
Queremos lenitivos para além
da fugacidade consumista, desejamos afastar esse perene estado
de intranquilidade. Muito conseguimos materialmente e, talvez,
nos tenhamos perdido.
Agostinho (354-430) pode nos
socorrer! Esse pré-medieval (que
o nosso contemporâneo filósofo
alemão Karl Jaspers chamou de
"o primeiro homem moderno")
viveu mergulhado nessas humanas questões e sobre elas escreveu
fundamente. Venerado como
santo pelos católicos, é, sem dúvida, patrimônio cultural da humanidade. Se é possível perguntar o
que seria de Deus sem Bach, mais
ainda devemos indagar: o que seria do Ocidente sem Agostinho?
Essa necessária admiração pelo
teólogo africano (nascido em Tagaste, na atual Argélia) desponta,
vigorosa, no ensaio biográfico sobre ele elaborado pelo pensador
norte-americano Garry Wills.
Aos 65 anos de idade e originário
de Atlanta (na Geórgia), Wills é
autor de vasta obra que abarca
desde estudos clássicos até mordazes análises do cotidiano político da América do Norte.
Ganhador do Pulitzer em 1992
(com livro sobre Lincoln), já escreveu sobre temas variados como ciência cristã, o papa Pio 11, a
América de John Wayne, Shakespeare e, agora, sobre Agostinho.
A excelente biografia de Agostinho tecida por Garry Wills não se
restringe a mera concatenação asséptica de fatos, datas e idéias; o
escritor narra a vida do santo a
partir das dores, sofrimentos,
deslizes e conquistas que inundaram os 76 anos de existência daquele que ficou conhecido, também, como o "bispo de Hipona".
O autor da biografia vai além de
narrativas cronológicas; investe
(quase furioso) contra o que considera dois erros modernos de interpretação: o papel obsessivo da
sexualidade na vivência de Agostinho e, inédito, recusa o título
usual da mais conhecida e apaixonante obra agostiniana, "Confissões". Prefere chamá-la de "O
Testemunho", afirmando que o
"confiteri" usado pelo bispo tinha
o sentido de corroborar, testemunhar a presença de Deus nele, em
vez de confessar equívocos.
Wills nos conduz para o cerne
da atribulada alma agostiniana e,
ao nela penetrarmos, levados pela
respeitosa e crítica visão do biografador, nos perturbamos com
as tão atuais dúvidas de um pré-medieval. Afinal, é por intermédio dele que o cristianismo ganha
consistência teológica. Religião
nascida entre os que, hoje, chamaríamos de excluídos, nos seus
quatro primeiros séculos apoiou-se mais em uma prática religiosa
do que na elaboração de um corpo teórico sólido e articulado como o estruturado pelo africano.
Sua obra escrita compõe-se de 93
livros (em cálculo dele), 300 cartas
e o registro de 400 sermões.
Faltava ao cristianismo uma filosofia (enquanto teoria) que desse substância racional aos ditames da fé transmutados em teologia. Vários pensadores e religiosos cristãos antes dele haviam
procurado fazer essa ponte. No
entanto -é em e com Agostinho
que tal condição se realiza-, ao
edificar o pensamento de Platão
como o andaime de suas reflexões, ofereceu o que ainda estava
ausente: uma filosofia cristã como
poderosa ferramenta de justificação das Escrituras.
O que Wills nos mostra é o caminho seguido por Agostinho até
chegar a suas concepções sobre
Deus, corpo e alma, livre-arbítrio
e vontade, o bem e o mal, o tempo
e a infinitude e, mais importante,
a graça divina e a felicidade.
É um livro claro, sem ser simplório ou didatista; é breve e consegue ir ao âmago. Não é para
quem desconhece Agostinho
completamente: é preciso, para
melhor fruir, ter algumas noções
de história do período, platonismo, Bíblia, heresias da época etc.
Agostinho, como a Itabira de
Drummond, pode ser apenas
uma lembrança em nossas retinas
tão fatigadas, mas como dói. Por
isso vale sempre, ao visitá-lo, visitarmos a nós mesmos.
Livro: Santo Agostinho
Autor: Garry Wills
Tradução: Ana Luiza Dantas Borges
Avaliação:
Mario Sergio Cortella é professor do departamento de teologia e ciências da religião da PUC-SP
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