São Paulo, sábado, 15 de setembro de 2001

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Secretaria de Educação do Recife prepara coletânea de poemas de Solano Trindade

O pioneiro dos manos

Símbolo do debate sobre o "racismo cordial" brasileiro, escritor antecipou a linguagem dos rappers

XICO SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Há 40 anos, o pernambucano Francisco Solano Trindade, morto como indigente em 1974, no Rio, aos 65, cravava a saudação "mano", prefixo obrigatório de hoje entre rappers e jovens da periferia, na poesia negra brasileira pré-Racionais MC's.
"Que foi que fizeste mano/ Pra assim tanto falar?", soltava a loa. "(...) Subi para o morro, / Fiz sambas bonitos, / Conquistei as mulatas/ Bonitas de lá..."
Ao dedicar-se ao combate à intolerância, com uma obra que guarda as dores do panfleto, mas não esquece do lirismo devoto às mulheres, o poeta firmou-se, entre os militantes dos movimentos negros, como símbolo da resistência que se trava contra o "racismo cordial" do país.
Nos últimos dois anos, o precursor dos rappers, que foi cineasta, pintor e teatrólogo, teve seus poemas relançados e o estilo do seu trabalho reproduzido por Organizações Não-Governamentais e centros culturais que prezam por sua memória.
A poesia completa do autor foi relançada por uma pequena editora paulista, a Cantos e Prantos, no volume "Solano Trindade - O Poeta do Povo", organizado pela filha Raquel, artista plástica e coreógrafa. A edição reúne os livros "Poemas de uma Vida Simples" (1944), "Seis Tempos de Poesia" (58) e "Cantares do Meu Povo" (61, relançado pela editora Brasiliense no início dos anos 80).
Na internet, vários sites destacam no momento a vida e a obra do poeta, como o Pernambuco de A/Z (www2.jc.com.br/pe-az/) e o Portal Afro (www.portalafro.com.br).
"É o maior nome da poesia negra militante do Brasil, referência em todos os debates que se travam hoje, como a questão das cotas para negros nas universidades e o racismo que persiste", diz Inaldete Andrade, que organiza, para edição da Secretaria de Educação do Recife, uma coletânea dos poemas de Solano Trindade sobre Pernambuco.
Com o seu Estado como fonte, o poeta recupera alegorias infantis e loas populares que lembram a lírica dos conterrâneos Manuel Bandeira e o coloquialismo de Ascenso Ferreira -autor de "Catimbó", celebrado, em 1927, por Mário de Andrade, como o dono de "um ritmo verdadeiramente novo" no modo de fazer verso livre depois da tertúlia modernista.
Solano Trindade, tratado como "esse genial poeta" por Carlos Drummond de Andrade, juntava militância, lirismo e uma oratória que mais parecia um assobio.
Um dos poemas mais populares de Solano Trindade é "Tem Gente com Fome" -"Trem sujo de Leopoldina/ correndo correndo/ parece dizer/ tem gente com fome/ tem gente com fome/ tem gente com fome". Musicado, seria uma faixa de um disco de 75 do grupo "Secos & Molhados".
A censura do regime militar, todavia, cuidou em proibir a canção, gravada posteriormente, anos 80, por Ney Matogrosso, um dos integrantes do conjunto, já em carreira solo.
Com o Teatro Popular Brasileiro (TPB), fundado pelo poeta em 1950, foi o primeiro a encenar, seis anos depois, "Orfeu da Conceição", de Vinicius de Moraes, que daria o filme homônimo do francês Marcel Camus. O grupo correu a Europa, participou de espetáculos a convite de Edith Piaf e da Commédie Française.
Solano Trindade animou-se também com a dança, no comando da corporação Brasiliana, que teve igual destino de sucesso.
Ao contrário do personagem de "Terra em Transe", de Glauber Rocha, que não aguenta a mistura de poesia e política em um homem só, o avô dos rappers não sabia separar uma coisa da outra.
Nesse embalo, organizou, nos anos 30, as primeiras reuniões para discutir o racismo no Brasil no século passado, o 1º e 2º Congresso Afro-Brasileiro, realizados no Recife, que respirava o lançamento de "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, e em Salvador.
O engajamento político do autor em uma organização criada para enfrentar o racismo, fato raro na época, teve início em 36, quando fundou, na companhia do pintor primitivista Barros Mulato e o do escritor Vicente Lima, a Frente Negra Pernambucana.
O apego ao panfleto, no entanto, nunca impediu que sua poesia fosse admirada por gente do ramo, como o poeta e ensaísta Sérgio Milliet, Carlos Drummond de Andrade, o escritor e crítico literário Otto Maria Carpeaux, entre tantos outros do mesmo calibre.
"Organizando bailados, editando revistas, promovendo espetáculos e conferências, incansável em sua atividade, poucos fizeram tanto quanto ele pelo ideal da valorização do negro", anotou Milliet, em 1961.
O escritor Darcy Ribeiro, já nos anos 80, dizia que Solano Trindade foi um dos mais importantes nomes do século passado no trabalho de injetar pilha nova na auto-estima dos negros do Brasil.
Aí está também a semelhança do poeta com a legião de "manos" do rap, que segue a mesma pegada, no país que teima em manter a mancha racista do atraso.
Solano Trindade é, como ele mesmo cantava, "blues, swings, sambas, frevos, macumbas, jongos", ritmos de angústia e de protestos, para ferir os ouvidos.


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