|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Secretaria de Educação do Recife prepara coletânea de poemas de Solano Trindade
O pioneiro dos manos
Símbolo do debate sobre o "racismo cordial" brasileiro, escritor antecipou a linguagem dos rappers
XICO SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL
Há 40 anos, o pernambucano
Francisco Solano Trindade, morto como indigente em 1974, no
Rio, aos 65, cravava a saudação
"mano", prefixo obrigatório de
hoje entre rappers e jovens da periferia, na poesia negra brasileira
pré-Racionais MC's.
"Que foi que fizeste mano/ Pra
assim tanto falar?", soltava a loa.
"(...) Subi para o morro, / Fiz sambas bonitos, / Conquistei as mulatas/ Bonitas de lá..."
Ao dedicar-se ao combate à intolerância, com uma obra que
guarda as dores do panfleto, mas
não esquece do lirismo devoto às
mulheres, o poeta firmou-se, entre os militantes dos movimentos
negros, como símbolo da resistência que se trava contra o "racismo cordial" do país.
Nos últimos dois anos, o precursor dos rappers, que foi cineasta, pintor e teatrólogo, teve
seus poemas relançados e o estilo
do seu trabalho reproduzido por
Organizações Não-Governamentais e centros culturais que prezam por sua memória.
A poesia completa do autor foi
relançada por uma pequena editora paulista, a Cantos e Prantos,
no volume "Solano Trindade - O
Poeta do Povo", organizado pela
filha Raquel, artista plástica e coreógrafa. A edição reúne os livros
"Poemas de uma Vida Simples"
(1944), "Seis Tempos de Poesia"
(58) e "Cantares do Meu Povo"
(61, relançado pela editora Brasiliense no início dos anos 80).
Na internet, vários sites destacam no momento a vida e a obra
do poeta, como o Pernambuco de
A/Z (www2.jc.com.br/pe-az/) e o
Portal Afro (www.portalafro.com.br).
"É o maior nome da poesia negra militante do Brasil, referência
em todos os debates que se travam hoje, como a questão das cotas para negros nas universidades
e o racismo que persiste", diz Inaldete Andrade, que organiza, para
edição da Secretaria de Educação
do Recife, uma coletânea dos poemas de Solano Trindade sobre
Pernambuco.
Com o seu Estado como fonte, o
poeta recupera alegorias infantis e
loas populares que lembram a lírica dos conterrâneos Manuel Bandeira e o coloquialismo de Ascenso Ferreira -autor de "Catimbó", celebrado, em 1927, por Mário de Andrade, como o dono de
"um ritmo verdadeiramente novo" no modo de fazer verso livre
depois da tertúlia modernista.
Solano Trindade, tratado como
"esse genial poeta" por Carlos
Drummond de Andrade, juntava
militância, lirismo e uma oratória
que mais parecia um assobio.
Um dos poemas mais populares
de Solano Trindade é "Tem Gente
com Fome" -"Trem sujo de
Leopoldina/ correndo correndo/
parece dizer/ tem gente com fome/ tem gente com fome/ tem
gente com fome". Musicado, seria
uma faixa de um disco de 75 do
grupo "Secos & Molhados".
A censura do regime militar, todavia, cuidou em proibir a canção, gravada posteriormente,
anos 80, por Ney Matogrosso, um
dos integrantes do conjunto, já
em carreira solo.
Com o Teatro Popular Brasileiro (TPB), fundado pelo poeta em
1950, foi o primeiro a encenar, seis
anos depois, "Orfeu da Conceição", de Vinicius de Moraes, que
daria o filme homônimo do francês Marcel Camus. O grupo correu a Europa, participou de espetáculos a convite de Edith Piaf e da
Commédie Française.
Solano Trindade animou-se
também com a dança, no comando da corporação Brasiliana, que
teve igual destino de sucesso.
Ao contrário do personagem de
"Terra em Transe", de Glauber
Rocha, que não aguenta a mistura
de poesia e política em um homem só, o avô dos rappers não sabia separar uma coisa da outra.
Nesse embalo, organizou, nos
anos 30, as primeiras reuniões para discutir o racismo no Brasil no
século passado, o 1º e 2º Congresso Afro-Brasileiro, realizados no
Recife, que respirava o lançamento de "Casa Grande & Senzala",
de Gilberto Freyre, e em Salvador.
O engajamento político do autor em uma organização criada
para enfrentar o racismo, fato raro na época, teve início em 36,
quando fundou, na companhia
do pintor primitivista Barros Mulato e o do escritor Vicente Lima, a
Frente Negra Pernambucana.
O apego ao panfleto, no entanto, nunca impediu que sua poesia
fosse admirada por gente do ramo, como o poeta e ensaísta Sérgio Milliet, Carlos Drummond de
Andrade, o escritor e crítico literário Otto Maria Carpeaux, entre
tantos outros do mesmo calibre.
"Organizando bailados, editando revistas, promovendo espetáculos e conferências, incansável
em sua atividade, poucos fizeram
tanto quanto ele pelo ideal da valorização do negro", anotou Milliet, em 1961.
O escritor Darcy Ribeiro, já nos
anos 80, dizia que Solano Trindade foi um dos mais importantes
nomes do século passado no trabalho de injetar pilha nova na auto-estima dos negros do Brasil.
Aí está também a semelhança
do poeta com a legião de "manos"
do rap, que segue a mesma pegada, no país que teima em manter a
mancha racista do atraso.
Solano Trindade é, como ele
mesmo cantava, "blues, swings,
sambas, frevos, macumbas, jongos", ritmos de angústia e de protestos, para ferir os ouvidos.
Texto Anterior: Programação de TV Próximo Texto: Versos levaram escritor à prisão Índice
|