Livro relata perseguição popular ao autor por usar boné em procissão em 1931, em São Paulo

FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL

Há 70 anos, num domingo de sol da pacata São Paulo, que tinha na época menos de 1 milhão de habitantes, o jovem arquiteto Flavio de Carvalho passava em frente à catedral da cidade, quando vislumbrou uma multidão na procissão de corpus Christi.
Foi quando lhe ocorreu "a idéia de fazer uma experiência, desvendar a alma dos crentes por meio de um reagente qualquer que permitisse estudar a reação nas fisionomias, no passo, no olhar, sentir enfim o pulso no ambiente", conta Carvalho no livro "Experimento nº 2".
O arquiteto voltou, então, para casa, colocou um boné na cabeça e retornou à procissão. O simples gesto de usar o acessório foi motivo para que a multidão ficasse enraivecida e só não linchasse o provocador por intervenção da polícia.
Carvalho publicou o relato de seu dia de terror no livro "Experiência nº 2", que é agora relançado por ocasião da mostra do surrealismo, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro.
"A investigação psicológica é o fio condutor de toda a obra de Flavio de Carvalho, o que o aproximou do surrealismo", afirma Denise Mattar, uma das curadoras da mostra no Rio, que sugeriu a reedição do livro para a editora Nau.
"Esse livro estava esgotado há décadas, era considerado raro, e por meio dele pode-se descobrir uma faceta interessante do artista", diz Mattar.
"Experimento nº 2" é dividido em duas partes. A primeira, uma narrativa contundente, descreve minuciosamente todas as sensações de Carvalho e a reação popular. A descrição de como o medo se apoderou dele lembra os textos kafkianos.
Já a segunda parte é uma investigação e análise da religiosidade popular. Recheado com citações de Freud e Nietzche, ela pode ser considerada uma "pesquisa da alma", como afirma Luiz Camillo Osorio em "Flavio de Carvalho" (Cosac & Naify, 2000).
Artista multidisciplinar, Carvalho (1899-1973) foi pintor, escultor e, como atesta "Experiência nº 2", também um performer.
Como tal, suas atitudes abriram "um universo novo de experimentação artística, à margem das instituições e das práticas tradicionais", ainda segundo Osorio.
Outro exemplo é a experiência nº 3, quando Carvalho circulou de saias pela cidade, em 1956, com o traje "New Look". Dessa vez, as reações não foram tão fortes. São Paulo já era uma metrópole.