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São Paulo, segunda-feira, 15 de setembro de 2003

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NELSON ASCHER

Imagem e som

Ninguém põe em dúvida que, durante o século passado, a cultura ocidental alcançou todo o planeta. Mas, se foi aparentemente unidirecional, a expansão da "alta cultura" não deixou de ser também uma espécie de interação. Embora chineses e povos centro-asiáticos tenham começado a escrever poemas influenciados pelo simbolismo francês, japoneses e africanos tenham usado em seus romances o que aprenderam de Dostoiévski ou Tolstói e pintores em países inesperados tenham absorvido os exemplos dos impressionistas, a difusão universal de modelos gestados em lugares específicos revelou-se profunda e complexa.
Um discípulo nipônico do realismo russo, por exemplo, não se reduzia apenas a imitador passivo de técnicas pretensamente superiores. O que vale para as ciências e para a tecnologia não se aplica às artes em geral. Mais provável é que ele lançasse mão de idéias oriundas de um contexto distinto para imprimir mudanças pessoais ao seu. E mesmo os produtos deste já poderiam ter, de alguma maneira, chegado antes ao Ocidente. Afinal, histórias, lendas e narrativas variadas transitam de um extremo da Eurásia ao oposto (geralmente no sentido Índia-Europa com escalas na Pérsia e no Oriente Médio) desde a Antiguidade. Se os criadores ocidentais influenciaram os demais, eles se interessaram igualmente pelo romance japonês medieval, pela pintura chinesa, pelos mitos dos aborígines australianos ou pelas canções tribais da África subsaariana.
A razão é simples. Assim como não faz sentido dizer que uma obra medieval é, por causa de sua antiguidade, melhor do que uma contemporânea ou (devido à sua modernidade) vice-versa, tampouco se pode associar qualquer juízo de valor a tal ou qual origem geográfica. Em medidas diversas, dificilmente explicáveis em termos espaço-temporais, todos os povos criaram obras poéticas, visuais, dramáticas e arquitetônicas interessantes.
Há, no entanto, uma exceção: a música erudita ocidental. Se os iluminadores persas de manuscritos nada ficam a dever aos monges irlandeses, nem as peças sânscritas de Kalídasa a Eurípides ou Sófocles, se a dama da corte Heian chamada Murasaki foi, com nove séculos de antecedência, o Proust japonês ou Góngora, com um milênio de atraso, tornou-se o Tu Fu espanhol, continuam ausentes o Bach polinésio, o Mozart hindu, o Beethoven árabe, o Verdi zulu.
Não que essas populações carecessem de música. Sucede que duas invenções européias, a saber, mecanismos para marcar a passagem do tempo e a notação musical, desencadearam um salto qualitativo. Graças a elas, os músicos ocidentais tornaram-se capazes, primeiro, de elaborar e interpretar repetidamente, com exatidão, grandes e intricadas composições e, segundo, de estabelecer uma continuidade que, independendo da presença dos compositores ou intérpretes precedentes, gerou um legado cumulativo aberto ao estudo e à transformação.
Os paralelos entre a singularidade musical do Ocidente e a revolução tecnológica que o conduziu à hegemonia são um assunto que mereceria mais atenção, pois, se não contradizem, decerto relativizam a tese de que nossa civilização se define pela imagem. O surgimento da fotografia, do cinema, da televisão, dos outdoors etc. ajudou a enfatizar seu caráter visual. Tal ênfase, contudo, parece exagerada e, até o momento, o telefone e o rádio talvez tenham sido mais importantes, sobretudo se lembrarmos que, não raro, o símbolo por excelência da visualidade, o televisor, desempenha o papel de um rádio ilustrado.
Seja como for, e por mais apreciadores que atraia no mundo inteiro, a música erudita ocidental seguiu e segue sendo uma manifestação artística basicamente restrita ao Ocidente. Ela não despertou no resto da humanidade uma fração do fascínio com que foram absorvidos seus conterrâneos poéticos, pictóricos, novelísticos, cinematográficos. E é aqui que desponta um dos paradoxos mais intrigantes dos dias de hoje.
Se, por um lado, a literatura ou a pintura euro-americana foram acolhidas, adaptadas e assimiladas em toda parte e, por outro, sonatas, sinfonias, concertos e óperas foram, até certo ponto, rejeitados, uma nova esfera cultural, malgrado se originar no Ocidente e ter a música em seu centro, acabou tão bem recebida alhures que os outros povos, em vez de assimilá-la, assimilaram-se a ela. Trata-se da cultura pop.
Esta marcou, seja na Europa, seja nas Américas, uma descontinuidade entre as gerações que cresceram antes ou durante a Segunda Guerra e as subsequentes, promovendo, muito mais do que uma divergência de gostos, verdadeiras alterações no modo de vida cotidiano. As inúmeras discussões e análises que procuraram determinar o significado desse processo quase encobrem seu traço determinante: o de que consiste em algo recentíssimo e em formação, como um embrião gigantesco. A primeira geração a sentir seus efeitos ainda está bem viva.
Quando um muçulmano fundamentalista, um burocrata norte-coreano ou chinês, um conservador europeu de esquerda ou de direita reclama de que a autenticidade de seu universo está sendo ameaçada, de que os valores de sua comunidade vêm sendo corrompidos por forças demoníacas, não é tanto Marx, McDonald's ou Hollywood que ele tem em mente quanto Elvis Presley e os Beatles, Madonna e Michael Jackson. Seu diagnóstico não poderia ser mais certeiro, pois é pelo ouvido que a cultura ocidental (ou a modernidade ou a americanização) se infiltra e, pior, se ele não gosta disso, sua filha gosta.



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