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NELSON ASCHER
Imagem e som
Ninguém põe em dúvida
que, durante o século passado, a cultura ocidental alcançou
todo o planeta. Mas, se foi aparentemente unidirecional, a expansão da "alta cultura" não deixou de ser também uma espécie
de interação. Embora chineses e
povos centro-asiáticos tenham começado a escrever poemas influenciados pelo simbolismo francês, japoneses e africanos tenham
usado em seus romances o que
aprenderam de Dostoiévski ou
Tolstói e pintores em países inesperados tenham absorvido os
exemplos dos impressionistas, a
difusão universal de modelos gestados em lugares específicos revelou-se profunda e complexa.
Um discípulo nipônico do realismo russo, por exemplo, não se
reduzia apenas a imitador passivo de técnicas pretensamente superiores. O que vale para as ciências e para a tecnologia não se
aplica às artes em geral. Mais provável é que ele lançasse mão de
idéias oriundas de um contexto
distinto para imprimir mudanças
pessoais ao seu. E mesmo os produtos deste já poderiam ter, de alguma maneira, chegado antes ao
Ocidente. Afinal, histórias, lendas
e narrativas variadas transitam
de um extremo da Eurásia ao
oposto (geralmente no sentido Índia-Europa com escalas na Pérsia
e no Oriente Médio) desde a Antiguidade. Se os criadores ocidentais influenciaram os demais, eles
se interessaram igualmente pelo
romance japonês medieval, pela
pintura chinesa, pelos mitos dos
aborígines australianos ou pelas
canções tribais da África subsaariana.
A razão é simples. Assim como
não faz sentido dizer que uma
obra medieval é, por causa de sua
antiguidade, melhor do que uma
contemporânea ou (devido à sua
modernidade) vice-versa, tampouco se pode associar qualquer
juízo de valor a tal ou qual origem geográfica. Em medidas diversas, dificilmente explicáveis
em termos espaço-temporais, todos os povos criaram obras poéticas, visuais, dramáticas e arquitetônicas interessantes.
Há, no entanto, uma exceção: a
música erudita ocidental. Se os
iluminadores persas de manuscritos nada ficam a dever aos
monges irlandeses, nem as peças
sânscritas de Kalídasa a Eurípides ou Sófocles, se a dama da corte Heian chamada Murasaki foi,
com nove séculos de antecedência, o Proust japonês ou Góngora,
com um milênio de atraso, tornou-se o Tu Fu espanhol, continuam ausentes o Bach polinésio,
o Mozart hindu, o Beethoven árabe, o Verdi zulu.
Não que essas populações carecessem de música. Sucede que
duas invenções européias, a saber, mecanismos para marcar a
passagem do tempo e a notação
musical, desencadearam um salto qualitativo. Graças a elas, os
músicos ocidentais tornaram-se
capazes, primeiro, de elaborar e
interpretar repetidamente, com
exatidão, grandes e intricadas
composições e, segundo, de estabelecer uma continuidade que,
independendo da presença dos
compositores ou intérpretes precedentes, gerou um legado cumulativo aberto ao estudo e à transformação.
Os paralelos entre a singularidade musical do Ocidente e a revolução tecnológica que o conduziu à hegemonia são um assunto
que mereceria mais atenção, pois,
se não contradizem, decerto relativizam a tese de que nossa civilização se define pela imagem. O
surgimento da fotografia, do cinema, da televisão, dos outdoors
etc. ajudou a enfatizar seu caráter
visual. Tal ênfase, contudo, parece exagerada e, até o momento, o
telefone e o rádio talvez tenham
sido mais importantes, sobretudo
se lembrarmos que, não raro, o
símbolo por excelência da visualidade, o televisor, desempenha o
papel de um rádio ilustrado.
Seja como for, e por mais apreciadores que atraia no mundo inteiro, a música erudita ocidental
seguiu e segue sendo uma manifestação artística basicamente
restrita ao Ocidente. Ela não despertou no resto da humanidade
uma fração do fascínio com que
foram absorvidos seus conterrâneos poéticos, pictóricos, novelísticos, cinematográficos. E é aqui
que desponta um dos paradoxos
mais intrigantes dos dias de hoje.
Se, por um lado, a literatura ou
a pintura euro-americana foram
acolhidas, adaptadas e assimiladas em toda parte e, por outro, sonatas, sinfonias, concertos e óperas foram, até certo ponto, rejeitados, uma nova esfera cultural,
malgrado se originar no Ocidente
e ter a música em seu centro, acabou tão bem recebida alhures que
os outros povos, em vez de assimilá-la, assimilaram-se a ela. Trata-se da cultura pop.
Esta marcou, seja na Europa,
seja nas Américas, uma descontinuidade entre as gerações que
cresceram antes ou durante a Segunda Guerra e as subsequentes,
promovendo, muito mais do que
uma divergência de gostos, verdadeiras alterações no modo de vida
cotidiano. As inúmeras discussões
e análises que procuraram determinar o significado desse processo quase encobrem seu traço determinante: o de que consiste em
algo recentíssimo e em formação,
como um embrião gigantesco. A
primeira geração a sentir seus
efeitos ainda está bem viva.
Quando um muçulmano fundamentalista, um burocrata norte-coreano ou chinês, um conservador europeu de esquerda ou de
direita reclama de que a autenticidade de seu universo está sendo
ameaçada, de que os valores de
sua comunidade vêm sendo corrompidos por forças demoníacas,
não é tanto Marx, McDonald's ou
Hollywood que ele tem em mente
quanto Elvis Presley e os Beatles,
Madonna e Michael Jackson. Seu
diagnóstico não poderia ser mais
certeiro, pois é pelo ouvido que a
cultura ocidental (ou a modernidade ou a americanização) se infiltra e, pior, se ele não gosta disso,
sua filha gosta.
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