São Paulo, segunda-feira, 15 de setembro de 2008

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Crítica/erudito/"Lia Ferenese e Ensemble Opera Nova Zürich"

"Ópera invisível" do italiano Salvatore Sciarrino vale festival contra repetição

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

A "cena" final é um deslumbramento. Estranhamente sereno, sonoramente aberto, com grandes acordes agudos nas cordas e sopros, simulando sinos eletronicamente prolongados, enquanto a cantora entoa a primeira cantilena real da ópera inteira, sonhando com "belos domingos nas províncias tranqüilas" e a "alegria da brancura mais limpa". "Cena" entre aspas, porque nada se encena de fato, embora tudo se imagine no compactado "Lohengrin" de Salvatore Sciarrino, apresentado sexta e sábado pela Opera Nova Zürich, com Lia Ferenese, no Sesc Vila Mariana.
O siciliano Sciarrino (1947) é um dos compositores mais prolíficos da música contemporânea, autor de mais de 150 obras. Não chega a ser um dos mais nem um dos menos tocados. Sua música tender a ficar restrita aos fóruns especializados -como era o caso aqui, neste concerto do Festival Música Nova- não deve ser uma acusação, a não ser que a acusação seja contra todo o repertório.
Sciarrino escreve no limite entre o audível e o inaudível, música delicadíssima, mas também expressivíssima, com microvariações timbrísticas e explorações de sonoridades inusuais, especialmente aspiradas e sopradas. O compositor tem se dedicado às peças dramáticas: foram seis, desde 1998.
"Lohengrin", de 1984, é baseada em um texto do poeta simbolista Jules Laforgue (1860-1887), que subverte o mito tornado operisticamente célebre por Wagner (1813-1883). Só quem fala é Elsa, injustamente acusada de ter matado o irmão, salva afinal pelo cavaleiro Lohengrin, que chega montado num cisne -o irmão enfeitiçado-, mas não pode ter seu nome conhecido.
Na ópera de Sciarrino, autodefinida como "ação invisível", não há cenários nem ação. Bastam uma cadeira, uma mesa, um copo d'água e um microfone à frente da orquestra de 20 músicos. E uma soprano como a argentina Lia Ferenese, capaz de dar vida à sucessão dramática de sussurros, soluços, grunhidos e chiados, gradualmente se transformando em palavras italianas, à medida que a confusão mental de Elsa se deixa ver e ouvir.
Na primeira parte, os suíços, entrosados com alunos da USP, haviam apresentado duas peças de Klaus Huber (1924), outro praticante de sensibilidades limítrofes, entre o silêncio e o som, entre o passado e o futuro.
Sempre presente no presente, o Festival Música Nova permanece uma reserva de diferença, contra a repetição. Falando nisso: impossível entender a ausência de mais alunos, músicos, compositores na platéia quase minguada. Só Sciarrino já valeu o mês. Quem ouviu, viu; quem viver, virá.

Avaliação: ótimo


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