São Paulo, Sexta-feira, 15 de Outubro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA
Filme inventa o cinema de investidor

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Logo nos primeiros fotogramas, "Mauá, O Imperador e o Rei" deixa claro a que tipo de cinema adere. Não é ao de autor, nem ao industrial, mas a algo que se poderia chamar "cinema de investidor".
Um sinal disso: ali, antes ainda da primeira imagem, estão escrupulosamente estampados os nomes de todos aqueles que investiram no filme.
Na verdade é uma praxe, desde que o Estado decidiu delegar à iniciativa privada (e não à sociedade, vale lembrar) a inteira responsabilidade sobre o que pode ou não ser filmado no Brasil.
Não é na apresentação, portanto, que "Mauá" inova, mas na perfeita identidade entre forma e fundo: é possivelmente o primeiro filme patrocinado pelo empresariado que interessará estritamente ao empresariado.
Significaria isso uma conversão ao neoliberalismo de Sergio Rezende, que ainda na década de 90 foi biógrafo de Carlos Lamarca, o militar guerrilheiro, ou cantou o martírio de Canudos?
Certamente, não. Pelo menos o cinema praticado em "Mauá" continua o mesmo. Imita servilmente a realidade, quando se trata do presente, e ilustra o passado à maneira daqueles desenhos de livros didáticos de história.
Aqui, trata-se de fazer a apologia do progresso industrial contra o atraso rural, do homem de iniciativa contra a abulia monárquica, do trabalho burguês contra a ociosidade aristocrática etc.
O homem-chave desse pensamento é o Barão de Mauá (Paulo Betti), exemplo de "self-made man" jogado no século 19 brasileiro, dono de empreendimentos tão variados quanto ferrovias, estaleiros ou bancos.
Em oposição a ele encontram-se d. Pedro 2º (Rodrigo Penna) e sua sombra, o Visconde de Feitosa (Othon Bastos), político conservador; o primeiro, encarnação do Estado ineficaz; o segundo, representante da idéia de "destino agrário" do Brasil.
Passemos pela banalidade que consiste em separar o mundo em personagens "bons" e "maus", a pretexto de obter a empatia do público. A utilização da história constitui, no caso, não um modo de conhecer o presente e suas dificuldades, a partir daquilo que vivemos no passado, mas seu exato inverso. Vista pelo filme, a "démarche" de Mauá é tão clara, evidente e justa que... até parece pauta de reivindicações da Fiesp.
A rigor, o filme não se importa com o nosso século 19, nem com Mauá, a não ser na medida em que sirvam para ilustrar idéias bem contemporâneas: o liberalismo como fator de expansão da riqueza e distribuição de renda; o Estado como empecilho ao homem empreendedor.
Quanto à forma, "Mauá" difere em um aspecto dos trabalhos de Sergio Rezende nesta década. "Lamarca" e "Guerra de Canudos" definem-se como filmes de ação. Seu fundamento é o acontecer das coisas.
Já "Mauá" é substancialmente um filme sobre as idéias do Barão de Mauá, de modo que raramente estamos diante do acontecer e quase sempre do acontecido. A câmera chega não no momento do fato, mas de sua repercussão. Com isso, temos uma obra em que o diálogo é o fundamento. Ou deveria ser, já que a palavra diálogo supõe relativa igualdade entre os personagens.
Em "Mauá", um dos personagens em cena serve quase sempre como "escada" para o outro, aquele que deve proferir o seu monólogo. Em certo instante, uma criada levanta a bola para que May, a mulher de Mauá, fale sobre os problemas do casal. Mais adiante, Feitosa discursa no Senado, ou o imperador em pessoa ouve Mauá discorrer sobre suas obras e dificuldades. Etc.
Trata-se, em suma, de uma forma confortável para uma explicação confortável da história, em que à parte cenários, vestuários e certas circunstâncias específicas (a escravatura, por exemplo), no fundo só existe um tempo, o presente, presente perpétuo, presente bem anos 90, anos do "fim da história".
O que já era lamentável em "Lamarca" e "Guerra de Canudos" -o sacrifício da especificidade e do pensamento de cada época, em favor de uma idéia geral e a-histórica sobre certas instituições (nos dois casos, a vítima preferencial eram os militares), aqui deriva para a própria caricatura.
"Mauá" não afirma um desejo pessoal ou obsessões que caracterizam um autor (o que se poderia suspeitar que motivasse "Lamarca"), nem tem as qualidades de espetáculo de "Guerra de Canudos" (apesar do roteiro não raro ridículo). Seu único sentido é promover um casamento tão perfeito quanto estéril entre um filme brasileiro e a maneira como as elites desejam se ver representadas na tela. O espírito privatista encontra em "Mauá" sua mais perfeita (e assustadora) expressão até aqui.


Avaliação:  


Filme: Mauá, O Imperador e o Rei Direção: Sergio Rezende Produção: Brasil, 1999 Com: Paulo Betti, Malu Mader, Othon Bastos Onde: a partir de hoje, nos cines Interlar Aricanduva 12, SP Market 3, Belas Artes Aleijadinho, Espaço Unibanco 3, Iguatemi 2 e circuito


Texto Anterior: Controvérsia cerca roteiro
Próximo Texto: Música: Selos dos EUA chegam com bossa e jazz
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.