São Paulo, Sexta-feira, 15 de Outubro de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
No calor de uma noite antiga de Copacabana

Eu invejava quem tinha visões. Havia um primo que via Santa Terezinha do Menino de Jesus. Anos mais tarde, um compadre que via discos voadores. Durante anos fiquei dando sopa ao acaso, quem sabe eu poderia merecer a honra.
Contudo, houve aquela noite de verão, verão dos bravos, 40 graus à sombra. Trabalhava num jornal que tinha ar-condicionado na redação, era a mais luxuosa da época. Mas havia um pacto diabólico entre o calor e o sistema de refrigeração. Quando a temperatura passava dos 38 graus, o aparelho pifava ou funcionava ao contrário, produzindo um calor suplementar.
Eu fechava a primeira página e precisava descer à oficina. Com a máquina rodando, o chumbo derretido para fazer as telhas (era complicado o processo de impressão naquela época), a temperatura subia uns 20 graus a mais.
Rodado o jornal, peguei o carro e fui para casa. Morava em Copacabana e, quando dobrei na avenida Atlântica, não resisti ao apelo que vinha do mar e da noite. Procurei um trecho mal iluminado, deserto àquela hora da madrugada. Deixei a roupa na areia, próxima à maré, que era baixa, e senti o frio gostoso da primeira onda que veio farejando contra mim, como um cão que procura o dono.
Fiquei por ali mesmo, tentando dar algumas braçadas entre uma onda e outra. Preguiça de sair do mar, teria de me enxugar com a própria camisa, molharia o assento do carro, sujando-o com a areia que levaria no corpo. Tudo era pretexto para continuar ali, era sensual tomar banho sem roupa, na imensa enseada escura, o colar das luzes da orla marcando uma cidade que sufocava e gemia no calor e na noite.
Até que começou a soprar um ventinho chato, e as ondas ficaram mais grossas e súbitas. Era tempo de ir embora. Dei um último mergulho e voltei para a praia. Foi então que vi.
Ao lado do pequeno montinho que fizera com minhas roupas, havia um vulto sentado. À distância, era impossível saber se era homem ou mulher. Mesmo assim pensei num assalto, embora fossem raros naquele tempo. A cidade era então mais tranquila, e, àquela hora, quem não estivesse dormindo estaria amando, metade da turma em cima da outra metade. Sozinho no mundo e no mar, acho que somente eu.
Quando atingi o ponto mais raso, em que a água me batia pela cintura, fiz a mesma descoberta que Adão e Eva haviam feito após a maçã: eu estava nu. E, ao mesmo tempo, que o vulto ali na areia era uma mulher que parecia me esperar. Apesar das ondas cada vez mais fortes que me batiam nas costas, parei de caminhar em direção à areia, esperando que o vulto fosse embora.
Ficamos assim, ela e eu, olhando um para o outro. Até que uma onda me atirou para a frente, e, por um instante, fiquei exposto na minha nudez molhada. O vulto se levantou, como se viesse em minha direção.
Era mulher mesmo e parecia nua também. Via sua silhueta, lembrei uma turma que todas as manhãs fazia ginástica naquele trecho, a jovem que vinha sempre com um maiô preto e tinha umas pernas, bem, ela devia ser muito saudável para estar ali àquela hora, precisaria acordar cedinho para aproveitar o Sol que se levantaria das águas com aquela luz alaranjada que combinaria com a cor de suas coxas.
Senti nova onda se formar às minhas costas. E para não ser atirado à praia como um náufrago, virei-me para enfrentá-la. Enquanto atravessava a massa líquida, que fervia em torno da minha cabeça e cheirava a peixes salgados e a conchas vazias, decidi sair do mar, acontecesse o que acontecesse. Ou, o que seria pior, nada acontecesse.
Quando me voltei para a praia, não havia ninguém. Olhei em todas as direções, inclusive para o mar, talvez ela tivesse mergulhado. Nada. O tempo em que eu estivera submerso fora mínimo, em três, quatro segundos, ela não poderia ter sumido.
Caminhei em direção ao montinho que fizera com minhas roupas. Olhei em torno. Novamente nada. Quando fui apanhar o blusão para me enxugar, vi marcas dos pés dela. Acompanhei aquelas marcas por alguns metros, de repente sumiram.
Eu não havia bebido naquela noite. Quando mergulhara, só queria me livrar do calor que me incendiara a carne. Nunca tinha visto Santa Teresinha do Menino Jesus nos bambuais de minha infância. Nunca tinha visto um disco voador.
Durante algum tempo aquela silhueta de mulher recortada na noite me perseguiu. Voltei àquele trecho da praia algumas vezes, à mesma hora.
Pensei que havia me esquecido daquela visão. Outro dia, vindo de um compromisso que terminou tarde, passei por ali. Estava tudo deserto. Parei o carro e fiquei olhando o mar, que era o mesmo. Mas eu não era o mesmo. Não tive coragem de tirar a roupa e mergulhar fundo.


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