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MARCELO COELHO
Com músculos e tiros de bazuca
Não me lembro qual o escritor norte-americano que
declarou, depois dos atentados do
11 de Setembro, que os Estados
Unidos haviam finalmente "perdido a sua inocência". Para um
latino-americano, a frase parece
estranha: se há um país que nunca foi inocente neste mundo, trata-se precisamente dos Estados
Unidos.
Seja como for, é provável que
parcelas da opinião pública americana estejam mesmo procurando a velha inocência perdida. Arnold Schwarzenegger, menos do
que um ator hollywoodiano, é um
personagem de história em quadrinhos. O charme sinistro de Ronald Reagan, nos anos 80, ainda
tinha aspecto adulto: cercava-se
da discrição em preto-e-branco
dos filmes em que homens usavam chapéu, falavam de crimes e
negócios e deixavam aparecer a
ponta do lenço imaculado no bolsinho do paletó. Schwarzenegger
não ostenta as credenciais de um
ex-galã: é um super-herói de silicone. Sua pessoa tem existência
menos real do que Conan ou o
Exterminador do Futuro.
George W. Bush, como foi notado pela "Carta Capital" numa capa famosa, tem por vezes a expressão do Alfred E. Newman da
revista "Mad". Talvez tenhamos
virado uma página não da história, mas do mesmo número da
"Mad": encontramos assim em
Schwarzenegger aquele fortão da
praia, invejado pelos personagens
de Don Martin, ou o professor de
educação física do próprio Alfred,
se este frequentasse um colégio
para pessoas de inteligência normal.
Não se trata, é óbvio, de inocência, mas de total infantilização. O
termo ainda tem conotações benévolas. A infantilização aqui se
manifesta na convicção de que
qualquer discordância pode ser
resolvida com músculos e tiros de
bazuca.
Os mecanismos da diplomacia e
do convencimento não estão à altura da compreensão do menino
franzino, humilhado na escola,
de aparelho nos dentes e notas
nada brilhantes, que acalenta
fantasias de Extermínio Final
não apenas como forma de se livrar dos inimigos, mas para compensar a sua sensação de mediocridade e impotência. Às vezes,
sem nenhum exterminador legítimo por perto, esse garoto se desespera, compra um rifle e sai atirando ele mesmo. Longa vida a
Schwarzenegger, portanto: os que
vão morrer o saúdam.
Enquanto isso, em Hollywood,
os filmes de ação e tiroteio -digamos mais exatamente: de massacre e estupidez- vão cedendo
algum espaço a comédias sofisticadas, filmes de roubo chique e de
contos-do-vigário bem bolados.
Creio que isso também faz parte
da busca da inocência. Esse tipo
de filme tem na década de 60 o
seu modelo.
Penso em "Prenda-me se For
Capaz", de Steven Spielberg, com
seu roteiro preciso, a estilosíssima
música que acompanha a apresentação dos créditos logo no início do filme, e o charme ensolarado do falsário vivido por Leonardo Di Caprio: cercado de aeromoças, forjando dinheiro e diplomas,
um rapaz quase imberbe dá o
quinau nas autoridades do FBI.
Tudo também é cool, chique e
bossa-nova em "Onze Homens e
um Segredo", remake de um filme
de assalto estrelado por Frank Sinatra na década de 60. Filme e
crime planejados a cada fotograma, com um azeitado elenco de
ladrões: George Clooney, Brad
Pitt, Matt Damon e outros assaltam os cassinos geridos por Andy
Garcia com eficiência rematada e
indolor.
"Abaixo o Amor", há pouco
tempo em cartaz, é uma espécie
de paródia sem graça, mas bem
construída, das comédias com
Dean Martin, Rock Hudson ou
alguém parecido. Passa-se em
1962, anos pré-feministas e pré-movimento gay, em que todas as
mocinhas espertas do interior
queriam casar com milionários.
Mas o playboy não se rende, foge
lépido em seus mocassins; todas
as noites, dança o twist e beberica
suaves coquetéis; sua sexualidade, naqueles tempos de inocência,
não está sob suspeita.
Com seus protagonistas sinuosos, mestres no disfarce e no jogo
de cena, os três filmes parecem ser
uma homenagem a modos mais
sutis, kennedyanos, de governar o
mundo, as mulheres e o dinheiro.
Também homenageiam outra
coisa: a própria indústria cultural
americana. No filme de assalto, o
assalto é planejado como um filme, com elenco, roteirista, diretor
e contra-regra. O jovem falsário
de "Prenda-me se For Capaz" só
consegue enganar todo mundo
porque sabe mobilizar, como o
próprio Spielberg, as fantasias do
seu público.
Em "Abaixo o Amor", a dupla
romântica (Renée Zellweger e
Ewan McGregor) se dedica a um
jogo de representações em vários
níveis; os atores representam para
o público, mas os personagens representam-se a si mesmos, uns
para os outros. E o filme denuncia
sua própria artificialidade: Renée
Zellweger não representa apenas
uma moça do interior em busca
de sucesso, mas sim a atriz de um
filme dos anos 60 representando
essa moça do interior. Todos os
movimentos dos personagens são
coreografados, como numa dança sem música; suas falas dos personagens têm acompanhamento
musical, sem que ninguém cante.
Os atores se movem como marionetes; suas expressões são teleguiadas.
Não se trata de um remake, mas
de um filme fazendo a mímica de
algum outro filme, de algum musical desconhecido. Até as piadas
parecem ser sem-graça de propósito, já que sabemos que hoje em
dia as piadas mais "atrevidas" de
1962 não seriam tão engraçadas
assim.
É que a pilantragem individual
dos anos 60 também era inocente
diante da pilantragem planetária
dos dias de hoje. Os espertinhos
charmosos, que vemos agora ressurgindo nas telas, parecem ser
apenas emanações irreais de um
sistema corporativo que os dirige
implacavelmente. E quem não se
conformar com essa charmosa irrealidade -com as vigarices, as
tramóias e o blablablá soft do poder americano- que opte pelo
real: Schwarzenegger se encarrega dessa parte.
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