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São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2003

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MARCELO COELHO

Com músculos e tiros de bazuca

Não me lembro qual o escritor norte-americano que declarou, depois dos atentados do 11 de Setembro, que os Estados Unidos haviam finalmente "perdido a sua inocência". Para um latino-americano, a frase parece estranha: se há um país que nunca foi inocente neste mundo, trata-se precisamente dos Estados Unidos.
Seja como for, é provável que parcelas da opinião pública americana estejam mesmo procurando a velha inocência perdida. Arnold Schwarzenegger, menos do que um ator hollywoodiano, é um personagem de história em quadrinhos. O charme sinistro de Ronald Reagan, nos anos 80, ainda tinha aspecto adulto: cercava-se da discrição em preto-e-branco dos filmes em que homens usavam chapéu, falavam de crimes e negócios e deixavam aparecer a ponta do lenço imaculado no bolsinho do paletó. Schwarzenegger não ostenta as credenciais de um ex-galã: é um super-herói de silicone. Sua pessoa tem existência menos real do que Conan ou o Exterminador do Futuro.
George W. Bush, como foi notado pela "Carta Capital" numa capa famosa, tem por vezes a expressão do Alfred E. Newman da revista "Mad". Talvez tenhamos virado uma página não da história, mas do mesmo número da "Mad": encontramos assim em Schwarzenegger aquele fortão da praia, invejado pelos personagens de Don Martin, ou o professor de educação física do próprio Alfred, se este frequentasse um colégio para pessoas de inteligência normal.
Não se trata, é óbvio, de inocência, mas de total infantilização. O termo ainda tem conotações benévolas. A infantilização aqui se manifesta na convicção de que qualquer discordância pode ser resolvida com músculos e tiros de bazuca.
Os mecanismos da diplomacia e do convencimento não estão à altura da compreensão do menino franzino, humilhado na escola, de aparelho nos dentes e notas nada brilhantes, que acalenta fantasias de Extermínio Final não apenas como forma de se livrar dos inimigos, mas para compensar a sua sensação de mediocridade e impotência. Às vezes, sem nenhum exterminador legítimo por perto, esse garoto se desespera, compra um rifle e sai atirando ele mesmo. Longa vida a Schwarzenegger, portanto: os que vão morrer o saúdam.
Enquanto isso, em Hollywood, os filmes de ação e tiroteio -digamos mais exatamente: de massacre e estupidez- vão cedendo algum espaço a comédias sofisticadas, filmes de roubo chique e de contos-do-vigário bem bolados. Creio que isso também faz parte da busca da inocência. Esse tipo de filme tem na década de 60 o seu modelo.
Penso em "Prenda-me se For Capaz", de Steven Spielberg, com seu roteiro preciso, a estilosíssima música que acompanha a apresentação dos créditos logo no início do filme, e o charme ensolarado do falsário vivido por Leonardo Di Caprio: cercado de aeromoças, forjando dinheiro e diplomas, um rapaz quase imberbe dá o quinau nas autoridades do FBI.
Tudo também é cool, chique e bossa-nova em "Onze Homens e um Segredo", remake de um filme de assalto estrelado por Frank Sinatra na década de 60. Filme e crime planejados a cada fotograma, com um azeitado elenco de ladrões: George Clooney, Brad Pitt, Matt Damon e outros assaltam os cassinos geridos por Andy Garcia com eficiência rematada e indolor.
"Abaixo o Amor", há pouco tempo em cartaz, é uma espécie de paródia sem graça, mas bem construída, das comédias com Dean Martin, Rock Hudson ou alguém parecido. Passa-se em 1962, anos pré-feministas e pré-movimento gay, em que todas as mocinhas espertas do interior queriam casar com milionários. Mas o playboy não se rende, foge lépido em seus mocassins; todas as noites, dança o twist e beberica suaves coquetéis; sua sexualidade, naqueles tempos de inocência, não está sob suspeita.
Com seus protagonistas sinuosos, mestres no disfarce e no jogo de cena, os três filmes parecem ser uma homenagem a modos mais sutis, kennedyanos, de governar o mundo, as mulheres e o dinheiro. Também homenageiam outra coisa: a própria indústria cultural americana. No filme de assalto, o assalto é planejado como um filme, com elenco, roteirista, diretor e contra-regra. O jovem falsário de "Prenda-me se For Capaz" só consegue enganar todo mundo porque sabe mobilizar, como o próprio Spielberg, as fantasias do seu público.
Em "Abaixo o Amor", a dupla romântica (Renée Zellweger e Ewan McGregor) se dedica a um jogo de representações em vários níveis; os atores representam para o público, mas os personagens representam-se a si mesmos, uns para os outros. E o filme denuncia sua própria artificialidade: Renée Zellweger não representa apenas uma moça do interior em busca de sucesso, mas sim a atriz de um filme dos anos 60 representando essa moça do interior. Todos os movimentos dos personagens são coreografados, como numa dança sem música; suas falas dos personagens têm acompanhamento musical, sem que ninguém cante. Os atores se movem como marionetes; suas expressões são teleguiadas.
Não se trata de um remake, mas de um filme fazendo a mímica de algum outro filme, de algum musical desconhecido. Até as piadas parecem ser sem-graça de propósito, já que sabemos que hoje em dia as piadas mais "atrevidas" de 1962 não seriam tão engraçadas assim.
É que a pilantragem individual dos anos 60 também era inocente diante da pilantragem planetária dos dias de hoje. Os espertinhos charmosos, que vemos agora ressurgindo nas telas, parecem ser apenas emanações irreais de um sistema corporativo que os dirige implacavelmente. E quem não se conformar com essa charmosa irrealidade -com as vigarices, as tramóias e o blablablá soft do poder americano- que opte pelo real: Schwarzenegger se encarrega dessa parte.

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