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LIVROS
ROMANCE
Em "Não me Abandone Jamais", escritor aborda a clonagem humana
Kazuo Ishiguro investiga a negação do homem à alma
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Finalista do Booker Prize
deste ano, "Não me Abandone Jamais", do inglês Kazuo Ishiguro, autor de "Os Resíduos do
Dia", causa estranheza.
Como no último romance de
Philip Roth, aqui também se propõe um universo histórico paralelo. Em "Complô contra a América", a hipótese é: o que ocorreria
se os EUA tivessem apoiado a Alemanha nazista na Segunda Guerra? No livro de Ishiguro, vemos a
clonagem humana, que estaria há
muito assentada na sociedade.
Nos dois casos, não está tanto
em jogo o tema, mas como as
obras conseguem sobreviver -literariamente. O quanto cada autor consegue, ou não, ser bom
constitui a medida de sua excelência artística. Em Ishiguro, a clonagem é uma pedra no sapato tão
grande que quase nos abstivemos
de alardeá-la, sob o risco de roubar a surpresa ao leitor. Desde o
início sabemos que há algo sórdido ocorrendo num internato.
O horror não está na clonagem,
mas na forma como a humanidade opta por negar a alma e, portanto, o direito à vida. A questão
foi abordada em "A Vida dos Animais", de Coetzee. O paralelo histórico volta sempre aos judeus enviados às câmeras de gás. Daí a relevância do livro de Roth, apesar
de ele teimar que o anti-semitismo acabou. Está vivo nos subterrâneos da mente e como possibilidade estética do horror. O pesadelo é revelado a conta-gotas, de
modo que, mesmo que saibamos
que o pior nos aguarde, quando
chegamos ao final, ele ainda nos
chacoalhe por termos sido capazes de pensar num desenlace que
não fosse o mais horrível possível.
A história é contada em primeira pessoa por Kath, uma mulher
de 31 anos que decide descrever
sua passagem pelo internato, bem
como sua relação com dois dos
alunos de lá, Tommy e Ruth. A
narrativa em primeira pessoa é
um procedimento narrativo que
Henry James relacionava ao mundo amorfo da autobiografia. A
questão é que, aqui, nada é amorfo: é milimetricamente planejado.
O mal-estar resume-se a uma
pergunta: como Kath pode deixar
de implicar, desde o início, a verdade sobre sua condição existencial? O fato é que apenas narrando
do jeito que ela narrou é que podemos sentir o peso de sua sina.
Mas aí passamos a desconfiar que
seu acerto de contas não esteja
voltado para si, mas para o proveito do leitor. Artifício que nos
deixa com a impressão de falsidade, do ponto de vista moral.
Kath vira sua história, como um
espelho, ao leitor. Ela se dirige a
ele como a alguém que partilhe
seu destino. Num dado trecho,
percebe que um dos personagens
a vê com repugnância e medo, como se fosse uma aranha. Pondera
que o choque de ser vista como
um inseto pode ser comparado a
um espelho diante do qual passamos, até um dia percebermos que
está refletindo uma outra "coisa
estranha e perturbadora". Ou seja, nós mesmos como insetos. É
nesses momentos que a arte de I-
shiguro se mostra inigualável.
Não me Abandone Jamais
Autor: Kazuo Ishiguro
Tradução: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 45 (344 págs.)
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