|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ROMANCE/"REDENÇÃO"
Ali disseca a esquerda com bom humor
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
A esquerda é capaz de rir de
si mesma. Essa é a grande
surpresa de "Redenção", romance do historiador paquistanês Tariq Ali recém-lançado no Brasil.
Depois da leitura de "Redenção", é difícil acreditar que seu autor seja o mesmo que, em seminário no Rio, no mês passado, declarou que "os bolivarianos [seguidores do presidente Hugo Chávez] revigoraram e fortaleceram a
democracia" venezuelana.
Pois "Redenção" seria o ambiente perfeito para um personagem como Chávez, cuja retórica
muitas vezes é idêntica à de vários
dos delirantes militantes trotskistas retratados no livro.
O trunfo do romance é justamente o de mostrar a pilha de absurdos sobre a qual se ergue o discurso "revolucionário" de uma
parte da esquerda mundial. E Ali
nos oferece a fechadura da porta
para que espiemos o nascimento
dessas imposturas.
Editor da "New Left Review", a
mais importante publicação da
esquerda britânica, Ali é portanto
credenciado para descrever o que
existe de fato por trás da inflamada fraseologia da liderança trotskista em sua disputa fratricida. É
um vale-tudo divertido, que inclui delação, mentiras, fraudes,
prostituição e perversão sexual.
Pouco resta dos líderes dessa esquerda depois da dissecação promovida por Ali. Vistos como
ociosos, maliciosos e enganadores, esses "ativistas políticos que
trabalham em escritórios minúsculos" sofrem da "síndrome do
poder burocrático", segundo o
historiador: "Privados do poder
real no mundo real, eles inventam
um mundo todo seu".
A trama de Ali começa na queda
do Muro de Berlim, em 1989, e a
conseqüente encruzilhada imposta à esquerda. O protagonista, o
ideólogo trotskista Ezra Einstein,
resolve, num lampejo semelhante
ao de uma revelação mística, convocar um congresso mundial esquerdista para definir novas estratégias diante do ocorrido.
A iniciativa deflagra uma enorme confusão entre os trotskistas,
que se engalfinham em disputas
dentro de suas "seitas", como Ali
chama as divisões do movimento.
O linguajar religioso não é gratuito. Surge, aliás, como o terreno
subjacente à trama, com tudo de
irracional que isso implica e por
mais paradoxal que seja -afinal,
de materialistas históricos não se
espera nenhuma concessão ao
campo do metafísico, pelo menos
não assim, em público.
Nesse ambiente místico, Ali embala algumas das situações que
descreve com uma aura fantástica, na melhor tradição latino-americana. Com o recurso da fantasmagoria, o romance despe
Trótski, para espanto de seus fanáticos seguidores, e o faz juntar-se aos grandes revolucionários da
história do comunismo numa
surpreendente tertúlia espírita sobre o reencantamento do mundo.
Atônita, a esquerda discute se
sua "salvação" está no outro
mundo -um bate-boca que oferece outra redenção, a do senso de
humor, que no livro deixa de ser
um "desvio pequeno-burguês".
Redenção
Autor: Tariq Ali
Editora: Record
Quanto: R$ 46,90 (352 págs.)
Texto Anterior: Livros - Romance: Kazuo Ishiguro investiga a negação do homem à alma Próximo Texto: Vitrine Brasileira Índice
|