São Paulo, sábado, 15 de outubro de 2005

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ROMANCE/"REDENÇÃO"

Ali disseca a esquerda com bom humor

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

A esquerda é capaz de rir de si mesma. Essa é a grande surpresa de "Redenção", romance do historiador paquistanês Tariq Ali recém-lançado no Brasil.
Depois da leitura de "Redenção", é difícil acreditar que seu autor seja o mesmo que, em seminário no Rio, no mês passado, declarou que "os bolivarianos [seguidores do presidente Hugo Chávez] revigoraram e fortaleceram a democracia" venezuelana.
Pois "Redenção" seria o ambiente perfeito para um personagem como Chávez, cuja retórica muitas vezes é idêntica à de vários dos delirantes militantes trotskistas retratados no livro.
O trunfo do romance é justamente o de mostrar a pilha de absurdos sobre a qual se ergue o discurso "revolucionário" de uma parte da esquerda mundial. E Ali nos oferece a fechadura da porta para que espiemos o nascimento dessas imposturas.
Editor da "New Left Review", a mais importante publicação da esquerda britânica, Ali é portanto credenciado para descrever o que existe de fato por trás da inflamada fraseologia da liderança trotskista em sua disputa fratricida. É um vale-tudo divertido, que inclui delação, mentiras, fraudes, prostituição e perversão sexual.
Pouco resta dos líderes dessa esquerda depois da dissecação promovida por Ali. Vistos como ociosos, maliciosos e enganadores, esses "ativistas políticos que trabalham em escritórios minúsculos" sofrem da "síndrome do poder burocrático", segundo o historiador: "Privados do poder real no mundo real, eles inventam um mundo todo seu".
A trama de Ali começa na queda do Muro de Berlim, em 1989, e a conseqüente encruzilhada imposta à esquerda. O protagonista, o ideólogo trotskista Ezra Einstein, resolve, num lampejo semelhante ao de uma revelação mística, convocar um congresso mundial esquerdista para definir novas estratégias diante do ocorrido.
A iniciativa deflagra uma enorme confusão entre os trotskistas, que se engalfinham em disputas dentro de suas "seitas", como Ali chama as divisões do movimento.
O linguajar religioso não é gratuito. Surge, aliás, como o terreno subjacente à trama, com tudo de irracional que isso implica e por mais paradoxal que seja -afinal, de materialistas históricos não se espera nenhuma concessão ao campo do metafísico, pelo menos não assim, em público.
Nesse ambiente místico, Ali embala algumas das situações que descreve com uma aura fantástica, na melhor tradição latino-americana. Com o recurso da fantasmagoria, o romance despe Trótski, para espanto de seus fanáticos seguidores, e o faz juntar-se aos grandes revolucionários da história do comunismo numa surpreendente tertúlia espírita sobre o reencantamento do mundo.
Atônita, a esquerda discute se sua "salvação" está no outro mundo -um bate-boca que oferece outra redenção, a do senso de humor, que no livro deixa de ser um "desvio pequeno-burguês".


Redenção
   
Autor: Tariq Ali
Editora: Record
Quanto: R$ 46,90 (352 págs.)


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