São Paulo, sábado, 15 de outubro de 2005

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LITERATURA/"ESPERANDO GODOT"

Obra aproxima universo de Beckett

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Chega quase a surpreender (positivamente) que, em um país de poucos leitores, as editoras estejam dando um tratamento tão especial a certos autores nos últimos anos. É o caso dos contos de Machado de Assis que vêm sendo lançados pela Martins Fontes, das obras de Nabokov pela Companhia das Letras, dos romances de Dostoiésvki pela ed. 34 ou dos textos de Samuel Beckett pela Cosacnaify. Deste, acaba de ser publicada a peça "Esperando Godot", com tradução e prefácio de Fábio de Souza Andrade, que já vertera para o português "Fim de Partida" e é também autor de um ótimo estudo sobre o escritor ("O Silêncio Possível", ed. Ateliê).
Qualquer aproximação ao universo ficcional de Beckett é complicada. Até mesmo um resumo de seus textos se torna uma tarefa bem espinhosa, o que faz sentido ("não há nada para ver"), afinal ele dinamita sistematicamente as noções convencionais de narrativa e de gênero. Aqui, por exemplo, tem-se dois homens, Vladimir e Estragon, que não podem sair do lugar em que estão porque precisam esperar por um Godot que nunca chega. Enquanto isso, conversam sobre quase nada e interagem com uma outra dupla, Pozzo e Lucky, sobre a qual o leitor/espectador fica sabendo menos ainda. Não é por acaso que o título de um ensaio sobre a outra peça fundamental do escritor feito pelo filósofo alemão Theodor Adorno seja "Tentando Entender "Fim de Partida'"...
Repetições constantes, referências às vezes veladas, às vezes não, às tradições literárias, filosóficas e religiosas, jogos de simetria e assimetria obsessivos, memórias apagadas quase instantaneamente povoam a peça e, ao mesmo tempo, convidam à interpretação. Como diz Estragon, "nada a fazer a respeito". Na verdade, não é bem assim, como prova a quantidade de livros e artigos que "tentam entender", com variadas doses de sucesso, a ficção do autor.
Mas há também quem desista, ou melhor, escolha um atalho, como o renomado crítico beckettiano Raymond Federman, que, depois de mais de 40 anos tentando entender, chegou à conclusão de que não havia um "sentido oculto" a ser decifrado naqueles textos, não havia ali uma simbologia: (Vladimir) "Isso está ficando cada vez mais insignificante". (Estragon) "Não o suficiente. Ainda". Para ele, não se trata de significado, e sim de superfície, da forma da linguagem: Beckett pintava quadros com palavras, e sua obra, como Federman demonstra a partir da "exposição" de vários trechos, correria paralela à evolução da pintura no século 20, passando pelo neo-impressionismo, pelo expressionismo, pelo cubismo, pelo surrealismo, pelo expressionismo abstrato, por experimentações geométricas etc.
Pode-se concordar, pode-se discordar, mas o exemplo dá a dimensão da importância desse irlandês que escrevia em inglês e francês e que agora, felizmente, está um pouco mais acessível a quem lê português.


Adriano Schwartz é professor de arte, literatura e cultura no Brasil da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP - Leste e autor de "O Abismo Invertido"

Esperando Godot
    
Autor: Samuel Beckett
Tradução: Fábio de Souza Andrade
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 48 (240 págs.)


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