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DRAUZIO VARELLA
Antitabagismo inveterado
O destino me levou a encarnar a figura de antitabagista implacável. De uns tempos
para cá, amigos, conhecidos e até
pessoas estranhas ficam sem graça de fumar em minha presença.
Na rua, transeuntes anônimos
chegam à infantilidade de esconder o cigarro aceso, ao passar por
mim. Nas festas, virei desmancha-rodinha: chego para falar de
futebol, o grupinho de fumantes
se desfaz para formar-se em outro
canto, de onde debandará ao menor sinal de minha aproximação.
Atribuo ao destino o papel encarnado, mas tenho consciência
da responsabilidade de meus
atos: não é de hoje que escrevo sobre os males do cigarro e discuto o
tema em programas de rádio e televisão. Mas outros médicos também o fazem, muitas vezes com
mais propriedade e ainda com a
qualificação de nunca haver fumado, sem por isso adquirir a fama de atormentador de fumantes
que me persegue. Por que aconteceu comigo?
Não é fácil avaliar o impacto de
ações humanas no espírito alheio,
mas vou arriscar algumas explicações.
Em primeiro lugar, porque fui
usuário de nicotina durante 19
anos, período no qual conheci a
escravidão, a ansiedade insuportável das crises de abstinência, a
humilhação de desentortar bituca amassada em cinzeiro cheio, a
prepotência de fumar em ambientes fechados na presença de
crianças, pessoas de idade, mulheres grávidas; finalmente, consegui me livrar desse inferno. Há
26 anos, nem por brincadeira ponho um cigarro na boca.
Segundo, porque tenho experiência dupla com essa droga: como ex-usuário e como médico de
dependentes menos afortunados,
que experimentaram na carne o
sofrimento imposto pelas doenças
pavorosas que o cigarro causa.
Terceiro, porque o que mais
exaspera o fumante é ouvir admoestações de quem jamais fumou. Quem nunca sentiu o prazer de uma tragada nem o desespero da abstinência, pode fazer
idéia de como é difícil deixar de
fumar?
Duvido! Larguei há tantos anos
e, ainda domingo passado, despertei mais uma vez no meio de
um sonho recorrente no qual
acendo um cigarro e encho os pulmões de fumaça. A nicotina é
uma cascavel adormecida nas
vísceras do ex-fumante, pronta
para acordar e dar o bote ao primeiro contato com ela. Sinto que
bastaria uma tragada para ir à
padaria atrás de um maço. Se fosse condenado à forca e me concedessem realizar o último desejo, a
primeira coisa seria pedir um cigarro antes de decidir.
Bem entendida essa introdução, vamos aos objetivos da coluna de hoje: defender a proibição
definitiva de qualquer tipo de publicidade destinada a promover o
fumo e propor aumento do preço
do cigarro.
Todos recordam que a propaganda de cigarro na TV só foi
proibida em 2000. Parece inacreditável que os fabricantes de cigarro, escorraçados das televisões
dos países desenvolvidos desde os
anos 1970 (ou antes), tenham tido
liberdade para praticar o crime
continuado de induzir crianças
brasileiras a fumar em massa, até
o início do século 21.
Não é preciso pós-graduação
em marketing para constatar que
a publicidade do cigarro é dirigida especificamente ao público infanto-juvenil. Os fabricantes se
valem das estatísticas da Organização Mundial da Saúde: 75%
dos fumantes começam a fumar
antes dos 18 anos; apenas 5% se
tornam dependentes depois dos
25 anos.
Pois é, a publicidade foi proibida no rádio e TV, mas continua a
ser exibida ostensivamente em espaços internos de bares e casas de
espetáculos. Até quando vamos
tolerar essa iniqüidade?
Quanto ao preço do maço de cigarros no Brasil, é dos mais baixos do mundo. Um maço das
marcas populares é vendido a R$
1,70 (ou menos, se vier do Paraguai), enquanto um litro de leite
do tipo C custa R$ 1,50. Tem cabimento?
Se é para aceitar o argumento
de que o preço deve ser baixo para
não sobrecarregar o orçamento
doméstico das camadas mais pobres, é o caso de perguntar se a
mesma lógica não deveria ser empregada no caso da maconha ou
do crack consumido pelos meninos da periferia de nossas cidades.
O preço do cigarro brasileiro
nos enche de vergonha nos fóruns
internacionais, porque há uma
infinidade de inquéritos epidemiológicos demonstrando que pequenos aumentos reduzem substancialmente o número de fumantes e o número de cigarros
diários dos que continuam fumando, especialmente entre os
adolescentes.
Em 2001, um estudo importante
mostrou que um aumento de 10%
no preço é motivo suficiente para
7% dos adolescentes e 4% dos
adultos deixar de fumar.
Na Califórnia, os índices de
câncer de pulmão têm caído três
vezes mais depressa do que no
resto dos Estados Unidos desde
1998, quando o Estado aumentou
o imposto em 25 centavos de dólar por maço.
Numa intervenção mais radical, a Prefeitura de Nova York aumentou US$ 3 na alíquota de impostos, elevando o custo de um
maço para cerca de US$ 7, e promulgou uma lei para banir o fumo do ambiente de trabalho. Como conseqüência imediata, 15%
dos adultos deixaram de fumar.
Os técnicos calculam que essa redução numérica impedirá 60 mil
mortes prematuras na cidade.
Em virtude desses e de tantos estudos semelhantes, este antitabagista inveterado toma a liberdade
de insistir com as autoridades federais que é fundamental taxar
com mais rigor a venda de cigarros. É uma medida simples, burocrática, para a implantação da
qual podemos contar com a enorme experiência da Receita Federal, capaz de evitar um sofrimento humano imensurável, milhares
de mortes prematuras, além de
reduzir gastos com saúde e, de
quebra, dar uma força para os cofres públicos.
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