São Paulo, Segunda-feira, 15 de Novembro de 1999
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MEMÓRIA

Sambista foi por aí

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

"Eu sou o samba/ A voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor/ Quero mostrar ao mundo que tenho valor...", bradava Jorge Goulart em 1955. A canção, "A Voz do Morro", era de Zé Keti, sambista ortodoxo já gravado, sem alarde, desde os anos 40 por Cyro Monteiro, Linda Baptista e Jamelão. Prefigurava uma queixa que ainda estava por vir, e da qual Zé Keti se faria porta-estandarte.
Na sequência, "A Voz do Morro" fez-se tema de "Rio, 40 Graus" (55), filme de Nelson Pereira dos Santos que antecipou o advento do cinema novo -o qual, por sua vez, abraçaria com entusiasmo os sambas de Zé Keti em diversas de suas trilhas sonoras.
Em "Rio, 40 Graus", casavam-se os interesses de cunho social do cineasta culto e os do sambista de morro -mas não havia ainda bossa nova. Depois dela, 58 adiante, samba ortodoxo perdeu moda e credibilidade, e "A Voz do Morro", nos 60, se transfigurou em canto ressentido de resistência. Por aí, já nem tudo eram barquinhos na bossa, e alguns de seus integrantes se alinharam com os preceitos do cinema novo e dos CPCs da UNE, rejeitando a "alienação" de banquinhos e violões.
Não por acaso, quem foi chamado à luta foi Zé Keti. Nara, inspirando-se em Elizeth Cardoso, começou a gravá-lo já em seu disco de estréia, de 64, em que cantou "Diz Que Fui por Aí".
No mesmo ano, Zé Keti estreou, com Nara Leão e o maranhense João do Vale -a mocinha fina e os homens rudes do morro carioca e do sertão nordestino unidos num só propósito, num só clichê de Brasil-, o show "Opinião", em que floresceram temas de protesto de Zé, como "O Favelado", "Nega Dina", "Opinião" etc.
Era o samba inscrito na corrente da canção de protesto, fazendo par indignado com as elaborações de Edu Lobo, Geraldo Vandré, Guarnieri, Carlos Lyra.
O protesto não era só sociopolítico. Nem por acaso, "A Voz do Morro" tornou-se nome do conjunto de samba teimoso que deu ao próprio Zé Keti a chance de estrear como cantor.
Liderou o Conjunto A Voz do Morro, que lançou três discos entre 65 e 66 e congregava ninguém menos que Elton Medeiros, Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho e o jovem e emergente Paulinho da Viola, entre outros.
Enquanto Nara pronunciava seu "Samba da Legalidade" (65), os temas do conjunto vasculhavam dramas de subúrbio como os de "Mascarada" e "Sorri" (parcerias com Elton Medeiros); Wilson Simonal, por sua vez, tomava o lado mais tênue do autor, detendo-se em "As Moças do Meu Tempo". Havia Zé Keti para todos.
Mas seus anos de glória estariam fadados a se restringir ao triângulo 64/66, e o advento do tropicalismo em 67/ 68 lançou a pá de cal. Zé foi sendo lançado à marginalidade, gravando alguns discos solo e caindo nas bocas de Paulinho da Viola ("O Meu Pecado", em 70, "Jaqueira da Portela", em 75), Nana Caymmi ("Diz Que Fui por Aí", em 73), Luiz Melodia ("A Voz do Morro", em 78).
Dos 80 em diante, foi ficando na história e saindo dos discos. Nos 90, afora gravações -Paulinho Boca de Cantor em "Nega Dina", Paulinho da Viola em "As Moças do Meu Tempo", um disco de Elton Medeiros, Zé Renato e Mariana de Moraes, tudo isso em 97-, foi pouco falado e cantado. Era, de fato, de outro tempo.
Como peça de despedida, fica "Diz Que Fui por Aí", recém-regravada por Luiz Melodia, o mesmo que havia usado o conceito comprimido em "A Voz do Morro" para ironizar críticas de que ele, Melodia, mais afeito ao "som universal", houvesse "traído" o samba. O conceito comprimido fica em "A Voz do Morro", Zé Keti foi por aí.



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