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São Paulo, sábado, 15 de novembro de 2003

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RODAPÉ

Uma temporada no inferno

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

É famosa a máxima do general prussiano Clausewitz segundo a qual "a guerra é a continuação da política por outros meios". Igualmente célebre é a inversão que Foucault fez da frase: "A política é a continuação da guerra por outros meios". Qual fórmula seria mais realista?
Apesar dos conflitos mundiais e dos holocaustos, estamos habituados a ver a guerra como uma variante controlável da civilização, como momento de ruptura em nome da paz ou da promessa de dias melhores. O romance "Alá e as Crianças Soldados", de Ahmadou Kourouma, nos lembra entretanto de que, para boa parte da humanidade, a guerra ainda é a forma mais cotidiana de fazer política, que o estado de exceção é a regra.
O livro é narrado por Birahima, um menino malinquês que, após perder a mãe, foge da Costa do Marfim (país natal do escritor) e viaja por regiões conflagradas da Libéria e de Serra Leoa em busca da tia que poderá acolhê-lo.
O périplo de Birahima acaba sendo uma temporada no inferno, um flagrante da devastação da África Ocidental. Assassinatos, corrupção, golpes de Estado com rituais de canibalismo, corpos amputados, crianças-soldados armadas com fuzis Kalachnikov: Birahima narra tudo isso com naturalidade infantil -e esse ponto de vista ingênuo é a chave desse romance.
Além de criar um guia para compreender a história africana recente (algumas personagens que participam dos complôs apresentados no livro ainda estão no poder), o grande mérito de Kourouma foi ter aplicado sobre os fatos um olhar materialista: com sua inocência, Birahima escancara os interesses nacionais e internacionais envolvidos no jogo político do continente, desconstruindo as versões fatalistas de um suposto "choque de civilizações".
A África de Ahmadou Kourouma não é fruto do embate pós-colonial entre uma cultura arcaica e as forças modernizadoras implantadas pelos colonizadores brancos, pois ambas (cultura autóctone e tecnologia ocidental) obedecem ao princípio impiedoso da exploração.
Em "Alá e as Crianças Soldados", o fetichismo dos animistas africanos e o fetiche das mercadorias disputadas a tiro nas ruas de Monróvia formam uma unidade. Tudo é primário, elementar -e as guerras entre etnias, cujos objetivos são puramente materiais, revelam a face tribal do capitalismo.
Nesse mundo de reificação absoluta, não há construções ideológicas ou um ilusionismo de mercado. O desejo de apropriação se manifesta sem peias, e até as religiões são mercadorias cuja posse confere um poder político imediato sobre o outro, mostrando o que há de caricatural na idealização culturalista do "sincretismo religioso".
Daí o efeito tragicômico, por exemplo, de personagens como os missionários que levam metralhadoras sob a batina ou como Prince Jonhson, líder cristão que faz "um churrasquinho finíssimo e delicioso" com o coração de um rival.
Em termos estritamente literários, o romance incorpora a insensatez desse mundo à própria linguagem, igualando-a a uma impossível operação tradutória. As atrocidades testemunhadas por Birahima são injustificáveis (daí a frase irônica que ele repete várias vezes: "Alá não é obrigado a ser justo em todas as coisas deste mundo"), mas também incompreensíveis -e por isso o menino-soldado traduz o tempo todo: usando um dicionário "Petit Robert" e um "Inventário das Particularidades Lexicais da África Negra", ele explica os termos africanos aos leitores ocidentais e tenta decodificar, para os leitores africanos, as nuanças da língua ocidental.
No início do romance, esse procedimento tem a função didática de transpor um fosso cultural. Ao longo do livro, porém, Birahima vai abrindo parênteses a cada parágrafo, dando sinônimos desnecessários às palavras, explicando o óbvio -e o leitor percebe então o sutil drama da representação que percorre a obra: o narrador tenta explicar para si mesmo o que viu; ele precisa da explicação enquanto tal; ele quer levar o nexo lógico das palavras para uma realidade diante da qual as palavras são insuficientes.


Alá e as Crianças Soldados
    
Autor: Ahmadou Kourouma Tradução: Flávia Nascimento Editora: Estação Liberdade Quanto: R$ 32 (232 págs.)



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