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RODAPÉ
Uma temporada no inferno
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
É famosa a máxima do general prussiano Clausewitz segundo a qual "a guerra é a continuação da política por outros
meios". Igualmente célebre é a inversão que Foucault fez da frase:
"A política é a continuação da
guerra por outros meios". Qual
fórmula seria mais realista?
Apesar dos conflitos mundiais e
dos holocaustos, estamos habituados a ver a guerra como uma
variante controlável da civilização, como momento de ruptura
em nome da paz ou da promessa
de dias melhores. O romance "Alá
e as Crianças Soldados", de Ahmadou Kourouma, nos lembra
entretanto de que, para boa parte
da humanidade, a guerra ainda é
a forma mais cotidiana de fazer
política, que o estado de exceção é
a regra.
O livro é narrado por Birahima,
um menino malinquês que, após
perder a mãe, foge da Costa do
Marfim (país natal do escritor) e
viaja por regiões conflagradas da
Libéria e de Serra Leoa em busca
da tia que poderá acolhê-lo.
O périplo de Birahima acaba
sendo uma temporada no inferno, um flagrante da devastação da
África Ocidental. Assassinatos,
corrupção, golpes de Estado com
rituais de canibalismo, corpos
amputados, crianças-soldados armadas com fuzis Kalachnikov: Birahima narra tudo isso com naturalidade infantil -e esse ponto de
vista ingênuo é a chave desse romance.
Além de criar um guia para
compreender a história africana
recente (algumas personagens
que participam dos complôs
apresentados no livro ainda estão
no poder), o grande mérito de
Kourouma foi ter aplicado sobre
os fatos um olhar materialista:
com sua inocência, Birahima escancara os interesses nacionais e
internacionais envolvidos no jogo
político do continente, desconstruindo as versões fatalistas de um
suposto "choque de civilizações".
A África de Ahmadou Kourouma não é fruto do embate pós-colonial entre uma cultura arcaica e
as forças modernizadoras implantadas pelos colonizadores
brancos, pois ambas (cultura autóctone e tecnologia ocidental)
obedecem ao princípio impiedoso da exploração.
Em "Alá e as Crianças Soldados", o fetichismo dos animistas
africanos e o fetiche das mercadorias disputadas a tiro nas ruas de
Monróvia formam uma unidade.
Tudo é primário, elementar -e
as guerras entre etnias, cujos objetivos são puramente materiais, revelam a face tribal do capitalismo.
Nesse mundo de reificação absoluta, não há construções ideológicas ou um ilusionismo de mercado. O desejo de apropriação se
manifesta sem peias, e até as religiões são mercadorias cuja posse
confere um poder político imediato sobre o outro, mostrando o
que há de caricatural na idealização culturalista do "sincretismo
religioso".
Daí o efeito tragicômico, por
exemplo, de personagens como
os missionários que levam metralhadoras sob a batina ou como
Prince Jonhson, líder cristão que
faz "um churrasquinho finíssimo
e delicioso" com o coração de um
rival.
Em termos estritamente literários, o romance incorpora a insensatez desse mundo à própria
linguagem, igualando-a a uma
impossível operação tradutória.
As atrocidades testemunhadas
por Birahima são injustificáveis
(daí a frase irônica que ele repete
várias vezes: "Alá não é obrigado
a ser justo em todas as coisas deste
mundo"), mas também incompreensíveis -e por isso o menino-soldado traduz o tempo todo:
usando um dicionário "Petit Robert" e um "Inventário das Particularidades Lexicais da África Negra", ele explica os termos africanos aos leitores ocidentais e tenta
decodificar, para os leitores africanos, as nuanças da língua ocidental.
No início do romance, esse procedimento tem a função didática
de transpor um fosso cultural. Ao
longo do livro, porém, Birahima
vai abrindo parênteses a cada parágrafo, dando sinônimos desnecessários às palavras, explicando
o óbvio -e o leitor percebe então
o sutil drama da representação
que percorre a obra: o narrador
tenta explicar para si mesmo o
que viu; ele precisa da explicação
enquanto tal; ele quer levar o nexo
lógico das palavras para uma realidade diante da qual as palavras
são insuficientes.
Alá e as Crianças Soldados
Autor: Ahmadou Kourouma
Tradução: Flávia Nascimento
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 32 (232 págs.)
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