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LIVRO/LANÇAMENTO
"A DITADURA DERROTADA"
Saga escrita pelo jornalista faz refletir sobre os contrastes que marcam sociedade brasileira
Gaspari demonstra o sabido sempre negado
MARCELO RIDENTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
No terceiro volume de sua
saga histórico-jornalística
sobre o período da ditadura, Elio
Gaspari demonstra irrefutavelmente o que já era sabido, mas negado até hoje pelas autoridades de
então: gravações inéditas provam
que Geisel (1907-1996) "conhecia,
apoiava e desejava a continuação
da política de extermínio" do que
restara da esquerda armada
quando assumiu o poder (p.388).
Entendia que "esse negócio de
matar é uma barbaridade, mas
acho que tem que ser" (p.324).
Mais sinistro: seria preciso "agir
com muita inteligência, para não
ficar vestígio nessa coisa" (p.387).
Pelo menos desde janeiro de 1971,
Geisel já era o favorito de Medici
para sucedê-lo (p.185).
Essas revelações por si sós justificariam o esforço de anos de pesquisa do autor, que utilizou fontes
a que só ele teve acesso, como inúmeras entrevistas e o famoso arquivo de Golbery (1911-1987), organizado por seu ex-secretário,
Heitor Ferreira, que também assessorou Geisel. Ferreira cedeu a
Gaspari seu diário manuscrito de
1.500 páginas e incontáveis horas
de entrevistas gravadas de Geisel
com diversos interlocutores de
outubro de 1973 a março de 1974.
O livro retrata o cotidiano dos
ditadores de 1970 a 1974, apresentando um painel dos eventos históricos que remontam aos anos
1930, sempre preocupado com a
citação das fontes em notas de rodapé. O leitor corre o risco de se
perder: são demasiados os detalhes e, por vezes, fica sem ter clareza de onde o autor quer chegar,
dada a narrativa de uma sucessão
quase infindável de acontecimentos e personagens.
Entretanto, parece haver ao menos duas teses centrais interligadas: 1. na intervenção militar, teriam imperado as ações impostas
ao sabor das circunstâncias, em
resposta às atribulações da conjuntura política, jamais uma racionalidade premeditada; 2. os
militares resolveram deixar o poder quando -a despeito de reinarem absolutos, submetendo todo tipo de oposição- viram sua
unidade ameaçada pela autonomia dos órgãos repressivos em relação à hierarquia tradicional e
pela luta de grupos militares para
conseguir o poder.
Geisel e Golbery -que ajudaram a construir a ditadura entre
1964 e 1967- teriam sido os principais responsáveis pelo seu desmonte entre 1974 e 1979, ao constatar que o regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem,
gerara novamente a insubordinação no interior das Forças Armadas. Justamente pela atuação decisiva dos dois generais nesse processo, eles são tratados no livro
com respeito e até admiração
-descontada a divergência explícita sobre os direitos humanos.
A hipótese da ausência de racionalidade premeditada na intervenção militar não é propriamente nova. A questão é saber se a história da ditadura deve centrar-se
na dinâmica da corporação militar, deixando em segundo plano
outros agentes históricos e as condições materiais envolvidas.
Visto de perto, qualquer Estado
-particularmente o policial-
está sujeito a um sem-número de
irracionalidades. Mas isso por si
só não quer dizer que impere a
falta de planejamento tático e estratégico, inerente à própria dinâmica militar.
O livro, ademais, suscita questões que não analisa. Por exemplo, comenta com naturalidade
que Geisel dirigiu a Petrobras, que
Golbery teve alto cargo na Dow
Química e Heitor Ferreira no Projeto Jarí. Não estaria aí um prenúncio do troca-troca de posições, hoje exacerbado, entre a máquina burocrática do Estado e as
grandes empresas privadas e públicas?
A gravação de conversas -de
que Geisel tinha conhecimento,
mas em geral não seus interlocutores- teria sido mero "interesse
na preservação de um registro
histórico", como afirma Gaspari
(p.423), ou algo "pior que Watergate", como comentou a filha de
Geisel (p.424), cacoete de gente
que se sentia acima do bem e do
mal, acostumada primeiro a
conspirar e depois a mandar com
base em experiências pessoais no
Serviço Nacional de Informação?
Os livros de Gaspari tornaram-se um fenômeno editorial e de recepção que fazem refletir sobre os
contrastes da sociedade brasileira.
De um lado, uma obra que lança
mão de recursos profissionais dos
mais avançados, com dezenas de
pessoas envolvidas nas atividades
de edição -por exemplo, o competente trabalho iconográfico de
Vladimir Sacchetta e a revisão
acadêmica minuciosa das notas
por Marco Villa; enfim, um produto cultural de qualidade, apoiado por intensa campanha de marketing, que deve chegar à lista dos
best-sellers.
De outro lado, essa obra só foi
possível devido à amizade que
Gaspari cultivou com Golbery,
Geisel e Heitor Ferreira, o que lhe
garantiu a guarda exclusiva do
material. Não deixa de ser um paradoxo que esses documentos públicos não estejam depositados
em dependência pública e só tenham sido salvos graças a uma rede de relações pessoais.
A Ditadura Derrotada
Autor: Elio Gaspari
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 49,50 (538 págs.)
Marcelo Ridenti é professor de sociologia na Unicamp, autor de "Em Busca do Povo Brasileiro - Artistas da Revolução" (Record, 2000), entre outros livros
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