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São Paulo, sábado, 15 de novembro de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

"A DITADURA DERROTADA"

Saga escrita pelo jornalista faz refletir sobre os contrastes que marcam sociedade brasileira

Gaspari demonstra o sabido sempre negado

MARCELO RIDENTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

No terceiro volume de sua saga histórico-jornalística sobre o período da ditadura, Elio Gaspari demonstra irrefutavelmente o que já era sabido, mas negado até hoje pelas autoridades de então: gravações inéditas provam que Geisel (1907-1996) "conhecia, apoiava e desejava a continuação da política de extermínio" do que restara da esquerda armada quando assumiu o poder (p.388).
Entendia que "esse negócio de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser" (p.324). Mais sinistro: seria preciso "agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa" (p.387). Pelo menos desde janeiro de 1971, Geisel já era o favorito de Medici para sucedê-lo (p.185).
Essas revelações por si sós justificariam o esforço de anos de pesquisa do autor, que utilizou fontes a que só ele teve acesso, como inúmeras entrevistas e o famoso arquivo de Golbery (1911-1987), organizado por seu ex-secretário, Heitor Ferreira, que também assessorou Geisel. Ferreira cedeu a Gaspari seu diário manuscrito de 1.500 páginas e incontáveis horas de entrevistas gravadas de Geisel com diversos interlocutores de outubro de 1973 a março de 1974.
O livro retrata o cotidiano dos ditadores de 1970 a 1974, apresentando um painel dos eventos históricos que remontam aos anos 1930, sempre preocupado com a citação das fontes em notas de rodapé. O leitor corre o risco de se perder: são demasiados os detalhes e, por vezes, fica sem ter clareza de onde o autor quer chegar, dada a narrativa de uma sucessão quase infindável de acontecimentos e personagens.
Entretanto, parece haver ao menos duas teses centrais interligadas: 1. na intervenção militar, teriam imperado as ações impostas ao sabor das circunstâncias, em resposta às atribulações da conjuntura política, jamais uma racionalidade premeditada; 2. os militares resolveram deixar o poder quando -a despeito de reinarem absolutos, submetendo todo tipo de oposição- viram sua unidade ameaçada pela autonomia dos órgãos repressivos em relação à hierarquia tradicional e pela luta de grupos militares para conseguir o poder.
Geisel e Golbery -que ajudaram a construir a ditadura entre 1964 e 1967- teriam sido os principais responsáveis pelo seu desmonte entre 1974 e 1979, ao constatar que o regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, gerara novamente a insubordinação no interior das Forças Armadas. Justamente pela atuação decisiva dos dois generais nesse processo, eles são tratados no livro com respeito e até admiração -descontada a divergência explícita sobre os direitos humanos.
A hipótese da ausência de racionalidade premeditada na intervenção militar não é propriamente nova. A questão é saber se a história da ditadura deve centrar-se na dinâmica da corporação militar, deixando em segundo plano outros agentes históricos e as condições materiais envolvidas.
Visto de perto, qualquer Estado -particularmente o policial- está sujeito a um sem-número de irracionalidades. Mas isso por si só não quer dizer que impere a falta de planejamento tático e estratégico, inerente à própria dinâmica militar.
O livro, ademais, suscita questões que não analisa. Por exemplo, comenta com naturalidade que Geisel dirigiu a Petrobras, que Golbery teve alto cargo na Dow Química e Heitor Ferreira no Projeto Jarí. Não estaria aí um prenúncio do troca-troca de posições, hoje exacerbado, entre a máquina burocrática do Estado e as grandes empresas privadas e públicas?
A gravação de conversas -de que Geisel tinha conhecimento, mas em geral não seus interlocutores- teria sido mero "interesse na preservação de um registro histórico", como afirma Gaspari (p.423), ou algo "pior que Watergate", como comentou a filha de Geisel (p.424), cacoete de gente que se sentia acima do bem e do mal, acostumada primeiro a conspirar e depois a mandar com base em experiências pessoais no Serviço Nacional de Informação?
Os livros de Gaspari tornaram-se um fenômeno editorial e de recepção que fazem refletir sobre os contrastes da sociedade brasileira. De um lado, uma obra que lança mão de recursos profissionais dos mais avançados, com dezenas de pessoas envolvidas nas atividades de edição -por exemplo, o competente trabalho iconográfico de Vladimir Sacchetta e a revisão acadêmica minuciosa das notas por Marco Villa; enfim, um produto cultural de qualidade, apoiado por intensa campanha de marketing, que deve chegar à lista dos best-sellers.
De outro lado, essa obra só foi possível devido à amizade que Gaspari cultivou com Golbery, Geisel e Heitor Ferreira, o que lhe garantiu a guarda exclusiva do material. Não deixa de ser um paradoxo que esses documentos públicos não estejam depositados em dependência pública e só tenham sido salvos graças a uma rede de relações pessoais.


A Ditadura Derrotada
    
Autor: Elio Gaspari Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 49,50 (538 págs.)

Marcelo Ridenti é professor de sociologia na Unicamp, autor de "Em Busca do Povo Brasileiro - Artistas da Revolução" (Record, 2000), entre outros livros


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