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"LETRA SÓ"
Antologia organizada por Eucanaã Ferraz recolhe 180 letras,
acompanhadas de pequenos comentários do poeta
Para guardar o mundo em mim, em nós
Isabel Pedrosa - 12.11.2003/Folha Imagem
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O cantor e compositor Caetano Veloso, autor do livro "Letra Só"; conjunto da obra vem com a coletânea "Sobre as Letras" |
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
É um livro de poemas. Ninguém deixará de escutar melodias e harmonias, ninguém deixará de ouvir a voz de Caetano
cantando esses milhares de versos, alegrias para sempre, que calam no fundo da memória, onde o
que é dos outros e o que é nosso
viram uma coisa só. Mas o livro, o
livro só, lança ainda outros mundos no mundo, entrando agora na
nossa vida como a radiação de um
corpo azul.
Outra versão desacompanhada
de "Letra Só" saiu antes em Portugal, em maio de 2003. Mas não se
compara ao deslumbrante objeto-livro projetado por Raul Loureiro, um transcendental e táctil
araçá. E esse vem com "Sobre as
Letras", uma coletânea de pequenos comentários, recolhidos pelo
organizador Eucanaã Ferraz (ele
mesmo um dos poetas mais estimados da nova geração).
É um livro de poemas, então; e
toma por modelo, explícito e confesso, a "Antologia Poética" de
Drummond, de 1962. Quer dizer:
o livro é dividido tematicamente,
não por discos. Os 180 poemas
vêm divididos em 17 categorias,
desde "a cidade natal" e "a Bahia",
até "o cinema", "a literatura" e "o
Carnaval", passando, entre outros, por "gente", "o amor", "a
música", "a cidade" e "os deuses".
Não há identificação imediata de
fonte ou data; para quem quiser,
está no fim do volume. Nosso autor já tem coragem de saber que é
imortal e nos libera da obsessão
didática. Toda essa poesia existe,
agora, e é uma letra só.
Aparece aqui em sua edição de
referência, já que cada poema foi
revisto por Caetano. As alterações
vão desde detalhes de quebra de
linha e pontuação -nenhuma letra tem ponto final- até verdadeiras revelações. Dois exemplos:
onde se lia "À noite, a chuva que
cai lá fora", leia-se "A noite à chuva que cai lá fora", sintaxe que talvez só ele tivesse a audácia e a arte
de escrever; e onde se lia "Porém
parece que a golpes de pê, de pé,
de pão", leia-se "há golpes", que é
bem outra pipoca.
Esses exemplos podem servir de
entrada para as duas grandes linhas dessa poesia "para a voz",
uma "poesia pública", como diz
Eucanaã Ferraz. Num extremo fica a poesia mais direta e simples,
aspirando à transparência da língua, que é também o engajamento pleno com as coisas; no outro,
fica a linguagem mais auto-referencial, o "samba inteligente", onde se podem escrever e cantar versos como "o adjetivo esdrúxulo
em U". Que a primeira frase do
primeiro poema seja "Onde eu
nasci passa um rio" e que a última
do último seja "Rima mira terça
certa/ E zera a reza" parece bom
demais para ser acaso.
Entre uma e outra, são mil gradações de registro, onde se cruzam, de modo único, as vozes de
precursores como Drummond,
Cabral, Augusto e Haroldo de
Campos, Noel Rosa, Dorival
Caymmi e Vinicius de Moraes
com a de contemporâneos (Chico
Buarque, Jorge Ben) e sucessores
("Gente quer respirar ar pelo nariz" não soa hoje como Arnaldo
Antunes?). Cruzam-se ali, também, tantas questões da cultura
brasileira desses últimos 40 anos
que o mínimo que se pode dizer,
no calor da hora, é que o livro pede estudo e comentário, no largo
âmbito da crítica.
Desse ponto de vista, o "Sobre
as Letras" fica um pouco frustrante, quase limitado ao anedotário.
Mas também não faria sentido
reescrever "Verdade Tropical".
"Letra Só" é irmã da "Verdade".
Quem senão Caetano poderia
pôr numa letra de música a palavra "revelar-nos-íamos"? Quem
mais rimaria "capte-me" com
"it's up to me"? Quem cantaria
"infinitivamente"? E a "deusa de
assombrosas tetas"? E "a subsombra desumana dos linchadores"?
O que mais pode esta língua?
Os momentos de virtuosismo
são tantos que, à maneira do próprio livro, se poderia falar em categorias. Sem muito rigor: virtuosismo da forma, no plano da frase
-"A carne, a arte arde, a tarde
cai" (onde o "c" de "carne" viaja
até o "cai" e "arte" + "arde" =
"tarde")- e no da estrutura (veja-se a variação do refrão de
"Gente"; ou, no extremo oposto,
as repetições imutáveis do "Tempo Tempo Tempo Tempo").
Virtuosismo do vocabulário:
"desentristecer", "orgasmaravalha-me"; de imagens: "Onde queres revólver, sou coqueiro", e de
idéias: "A verdade é seu dom de
iludir"; "alma tranquila de dor".
Virtuosismo da sintaxe: "E éramos olharmo-nos intacta retina";
das rimas: "Tranquilo e infalível
como Bruce Lee/ Virá que eu vi",
ou a sequência "néon/som/Hebron/tom", diferenciando "on" e
"om"; virtuosismo dos jogos de
palavra: "Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll",
onde a alma se satura de "soul"; e
das citações: "Como a própria
perfeição da rima para amor",
que naturalmente é "dor" e alude
ao refrão "pra que rimar amor e
dor?" de Monsueto Menezes, que
o próprio Caetano gravou para
ninguém nunca mais esquecer.
Seu nariz de poeta aponta sempre contra os chapadões. Mesmo
no contexto de absurda excelência da poesia da música popular
brasileira -um de nossos maiores patrimônios, relativamente
pouco estudado-, a arte de Caetano Veloso é qualquer coisa, ou
muito. Encanta e surpreende a cada página, que nunca se dá sem
fogo, sem o brilho da consciência
e da paixão. Depois do quê, ficamos nós, gente só, desastrados
tropeçando nos milagres.
Letra Só
Autor: Caetano Veloso
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 55 (344 págs. mais 80 págs.
do caderno "Sobre as Letras")
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