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São Paulo, sábado, 15 de novembro de 2003

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"LETRA SÓ"

Antologia organizada por Eucanaã Ferraz recolhe 180 letras, acompanhadas de pequenos comentários do poeta

Para guardar o mundo em mim, em nós

Isabel Pedrosa - 12.11.2003/Folha Imagem
O cantor e compositor Caetano Veloso, autor do livro "Letra Só"; conjunto da obra vem com a coletânea "Sobre as Letras"


ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

É um livro de poemas. Ninguém deixará de escutar melodias e harmonias, ninguém deixará de ouvir a voz de Caetano cantando esses milhares de versos, alegrias para sempre, que calam no fundo da memória, onde o que é dos outros e o que é nosso viram uma coisa só. Mas o livro, o livro só, lança ainda outros mundos no mundo, entrando agora na nossa vida como a radiação de um corpo azul.
Outra versão desacompanhada de "Letra Só" saiu antes em Portugal, em maio de 2003. Mas não se compara ao deslumbrante objeto-livro projetado por Raul Loureiro, um transcendental e táctil araçá. E esse vem com "Sobre as Letras", uma coletânea de pequenos comentários, recolhidos pelo organizador Eucanaã Ferraz (ele mesmo um dos poetas mais estimados da nova geração).
É um livro de poemas, então; e toma por modelo, explícito e confesso, a "Antologia Poética" de Drummond, de 1962. Quer dizer: o livro é dividido tematicamente, não por discos. Os 180 poemas vêm divididos em 17 categorias, desde "a cidade natal" e "a Bahia", até "o cinema", "a literatura" e "o Carnaval", passando, entre outros, por "gente", "o amor", "a música", "a cidade" e "os deuses". Não há identificação imediata de fonte ou data; para quem quiser, está no fim do volume. Nosso autor já tem coragem de saber que é imortal e nos libera da obsessão didática. Toda essa poesia existe, agora, e é uma letra só.
Aparece aqui em sua edição de referência, já que cada poema foi revisto por Caetano. As alterações vão desde detalhes de quebra de linha e pontuação -nenhuma letra tem ponto final- até verdadeiras revelações. Dois exemplos: onde se lia "À noite, a chuva que cai lá fora", leia-se "A noite à chuva que cai lá fora", sintaxe que talvez só ele tivesse a audácia e a arte de escrever; e onde se lia "Porém parece que a golpes de pê, de pé, de pão", leia-se "há golpes", que é bem outra pipoca.
Esses exemplos podem servir de entrada para as duas grandes linhas dessa poesia "para a voz", uma "poesia pública", como diz Eucanaã Ferraz. Num extremo fica a poesia mais direta e simples, aspirando à transparência da língua, que é também o engajamento pleno com as coisas; no outro, fica a linguagem mais auto-referencial, o "samba inteligente", onde se podem escrever e cantar versos como "o adjetivo esdrúxulo em U". Que a primeira frase do primeiro poema seja "Onde eu nasci passa um rio" e que a última do último seja "Rima mira terça certa/ E zera a reza" parece bom demais para ser acaso.
Entre uma e outra, são mil gradações de registro, onde se cruzam, de modo único, as vozes de precursores como Drummond, Cabral, Augusto e Haroldo de Campos, Noel Rosa, Dorival Caymmi e Vinicius de Moraes com a de contemporâneos (Chico Buarque, Jorge Ben) e sucessores ("Gente quer respirar ar pelo nariz" não soa hoje como Arnaldo Antunes?). Cruzam-se ali, também, tantas questões da cultura brasileira desses últimos 40 anos que o mínimo que se pode dizer, no calor da hora, é que o livro pede estudo e comentário, no largo âmbito da crítica.
Desse ponto de vista, o "Sobre as Letras" fica um pouco frustrante, quase limitado ao anedotário. Mas também não faria sentido reescrever "Verdade Tropical". "Letra Só" é irmã da "Verdade".
Quem senão Caetano poderia pôr numa letra de música a palavra "revelar-nos-íamos"? Quem mais rimaria "capte-me" com "it's up to me"? Quem cantaria "infinitivamente"? E a "deusa de assombrosas tetas"? E "a subsombra desumana dos linchadores"? O que mais pode esta língua?
Os momentos de virtuosismo são tantos que, à maneira do próprio livro, se poderia falar em categorias. Sem muito rigor: virtuosismo da forma, no plano da frase -"A carne, a arte arde, a tarde cai" (onde o "c" de "carne" viaja até o "cai" e "arte" + "arde" = "tarde")- e no da estrutura (veja-se a variação do refrão de "Gente"; ou, no extremo oposto, as repetições imutáveis do "Tempo Tempo Tempo Tempo").
Virtuosismo do vocabulário: "desentristecer", "orgasmaravalha-me"; de imagens: "Onde queres revólver, sou coqueiro", e de idéias: "A verdade é seu dom de iludir"; "alma tranquila de dor".
Virtuosismo da sintaxe: "E éramos olharmo-nos intacta retina"; das rimas: "Tranquilo e infalível como Bruce Lee/ Virá que eu vi", ou a sequência "néon/som/Hebron/tom", diferenciando "on" e "om"; virtuosismo dos jogos de palavra: "Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll", onde a alma se satura de "soul"; e das citações: "Como a própria perfeição da rima para amor", que naturalmente é "dor" e alude ao refrão "pra que rimar amor e dor?" de Monsueto Menezes, que o próprio Caetano gravou para ninguém nunca mais esquecer.
Seu nariz de poeta aponta sempre contra os chapadões. Mesmo no contexto de absurda excelência da poesia da música popular brasileira -um de nossos maiores patrimônios, relativamente pouco estudado-, a arte de Caetano Veloso é qualquer coisa, ou muito. Encanta e surpreende a cada página, que nunca se dá sem fogo, sem o brilho da consciência e da paixão. Depois do quê, ficamos nós, gente só, desastrados tropeçando nos milagres.


Letra Só
    
Autor: Caetano Veloso Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 55 (344 págs. mais 80 págs. do caderno "Sobre as Letras")



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