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DRAUZIO VARELLA
Raiou, resplandeceu, iluminou
Quando acordei, estava escuro, a silhueta da floresta
amazônica se perdia de vista às
margens do rio. Vindo de pontos
esparsos, os pios dos primeiros
pássaros quebraram o silêncio da
madrugada.
Fui buscar o computador. Sentei-me na proa do barco-escola
ancorado junto à boca do rio
Cuieiras, afluente do Negro, decidido a escrever uma descrição como as do tempo da escola primária no Liceu Acadêmico São Paulo, no Brás, com a pretensão talvez descabida de tentar descrever
o indescritível e compartilhar
com os leitores a beleza suprema
de uma aurora nesse canto do
Brasil, intocado como antes da
chegada dos portugueses.
A melodia harmoniosa do canto de uma ave solitária coincide
com o aparecimento gradual de
um brilho fosco, cinza-prateado,
mal perceptível acima do contorno das árvores, logo à minha direita. Lentamente, a partir dessa
área, um facho prateado se espalha em formato de concha, ganha
intensidade luminosa, realça a linha sinuosa que une as copas das
árvores situadas à sua frente e se
projeta contra a mata da margem
oposta. Nela, tornam-se discerníveis a massa de folhagem, os troncos mais altos e uma nesga de
praia esbranquiçada. Impávido,
o rio permanece negro, alheio à
timidez dos primeiros passos que
a aurora ensaia no leste.
Habituado ao cinzento dos prédios e às fendas de céu que se esgueiram entre eles, meu olhar se
perde reflexivo numa volta de 360
graus por aquela imensidão desabitada. Quando retorna ao ponto
de partida, encontra o prateado
mais reluzente e os primeiros tons
alaranjados a colorir a textura
delicada das nuvens mais próximas, que se desgarram da luz central. Em resposta imediata a essa
mudança de tonalidade, o verde
da margem oposta se torna mais
definido, e os troncos das árvores
altas emergem soberbos, alaranjados, no interior da mata.
Uma cortina de névoa translúcida se desprende da superfície
das águas, penetra as margens da
floresta e borra com magia os limites do horizonte. A luminosidade antes homogênea do nascente adquire um núcleo central
amarelado mais intenso, já capaz
de se intrometer entre os galhos
das árvores em seu caminho, iluminar com total nitidez a margem oposta e se refletir com suavidade nas cristas das ondulações
miúdas do rio, movidas por um
sopro suave de vento, que bate de
encontro à pele; sensação de prazer inacessível na cidade.
O azul-escuro do céu clareia a
cada minuto, ao mesmo tempo
em que as nuvens alaranjadas se
irradiam em círculos que desbotam à medida que se afastam pelo
espaço, até se desfazerem em fiapos de algodão esgarçados no ato
de tentar cobrir uma área de azul
maior do que seria possível.
A bruma espessa que repousa
sobre a superfície do rio até onde
a vista alcança começa a se esvair
a distância, com sutileza, para se
aglomerar concentrada em bolsões que pousam ao acaso no seio
da floresta. O rio se alarga, afunila e lá longe perde a nitidez no
meio dela. No centro geométrico
da claridade nascente, o dourado
ganha força, machuca a vista, define melhor o contorno das árvores à sua frente e dissemina infinitas tonalidades de verde nas folhas das árvores da margem contrária. As águas baixas, nesta
época do ano, deixam expostos
recortes de praias de areão batido, nas quais jazem troncos contorcidos em formas bizarras, como esculturas de um museu de
arte que submergirá com seu
acervo quando vierem as chuvas.
No rio, a amplitude das ondas
diminui, e as águas se aquietam
para formar um imenso espelho
que reflete os céus e a floresta projetada contra ele, em imagens virtuais indistinguíveis dos objetos
que lhes deram origem. Em questão de segundos, desponta o sol
como uma bola de fogo, agride
impiedosamente o olhar desavisado e sobe com pressa, resplandecente, para impor seu domínio
absoluto. Um reflexo de ouro ondulante forma um longo cone invertido na superfície âmbar do
rio. No céu, o azul-anil toma conta do espaço, e as nuvens de algodão alaranjado atingem a região
do poente tão espalhadas e tênues
que é preciso firmar os olhos para
reconhecer-lhes as cores.
A um palmo acima do dossel da
floresta, a bola incandescente cega quem ousar admirá-la; o movimento do feixe de ouro cintilante refletido no rio, também. O
vento ameno acaricia a pele
aquecida pela incidência dos
raios solares. Um depois do outro,
dois botos saltam fora da água e
deixam um rastro de ondas concêntricas. Longe, no horizonte da
última curva do rio, uma figura
humana surgida sabe lá Deus de
onde parece um graveto equilibrado na proa de uma canoa a remo.
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