São Paulo, quarta-feira, 15 de novembro de 2006

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MARCELO COELHO

"Bullying': prática de espancar e humilhar os alunos mais fracos revela crise da escola

CONFORME CHEGA o final do ano, muita gente se anima para organizar um tipo de festa que me provoca verdadeiros calafrios. Refiro-me às confraternizações dos velhos colegas de escola.
Tenho mais medo disso que de Halloween. Os mais afetuosos que me perdoem. Sei que muita gente amiga e simpática se perde de vista, e há alegria sincera em reencontrar alguns colegas de antigamente. Mas, friso bem, só alguns. Quantos outros, naquele tempo, não detestei profundamente? Talvez eu tenha tido sorte na vida adulta, mas nunca voltei a encontrar em mim mesmo a pureza da inimizade que experimentei nos tempos do colégio.
Mas passo adiante. Esta crônica, que começava bem-humorada, já se ensombrece. Admito: perdoar não é o meu forte. Penso então nos médios, nos colegas que, distantes da selvageria ou da generosidade a meu respeito, simplesmente "estavam lá", "eram do meu ano". Também em função deles, uma festa desse tipo me parece difícil de encarar.
Sem dúvida, o reencontro serve para que todos se avaliem e se comparem; apreciam o que foi feito de cada um, e não estão em jogo apenas os casos mais óbvios de devastação física. Há os bem-sucedidos, e há os desempregados, os que tiveram alguma tragédia pessoal... e perguntar a alguém "o que você anda fazendo?" não me parece a mais inocente das abordagens. É como se, lembrando aqueles fins de ano em que se distribuíam os boletins, a reunião servisse para que não mais a escola, mas a vida, venha divulgar as notas, boas ou péssimas, que couberam a cada um.
Sempre se aprende alguma coisa quando a classe se junta de novo... mas prefiro ser autodidata nesse campo. De todo modo, se não cultivo nenhuma nostalgia das salas de aula, devo reconhecer que não tenho tantas razões de queixa; sofri o que todo CDF de óculos sofria no ginásio, sem revidar. Vejo na "Época" desta semana que tudo piorou muito desde então. Em Petrolina, Pernambuco, uma menina de 13 anos morreu asfixiada, ao apanhar dos colegas de classe. A prática de espancar e humilhar os mais fracos da escola, freqüente desde que inventaram a lousa e as carteiras, virou febre, com direito a nome próprio, pesquisa sociológica e mesmo videogames que a simulam, para entretenimento e treino de seus adeptos nas horas vagas: é o "bullying".
A revista cita um levantamento feito em cinco países. Na Espanha, 13% dos alunos já foram insultados pelos colegas e 3,5% já apanharam.
No Brasil, talvez devido à ausência de touradas, os números são bem maiores: 33% já sofreram humilhações e 20% foram agredidos fisicamente. Isso porque não pesquisaram se existe "bullying" de alunos contra professores; ouço relatos alarmantes sobre isso também.
É provável que a ditadura do grupo sobre o comportamento individual tenha se acentuado entre os adolescentes. Ser gordo, hoje, é quase um estigma de caráter. Modelos cada vez mais rígidos de consumo e "atitude" levam a um policiamento coletivo que se aproxima do terror totalitário.
Que se reúnam pais, psicólogos e pedagogos. De minha parte, acho que o problema é com a instituição. Se o horário de recreio se transforma no pesadelo hobbesiano da luta de todos contra todos, inclino-me a ser hobbesiano também e dizer que faltam vigilantes. Claro que o "bullying" pode acontecer no ponto de ônibus ou na praça perto do colégio.
Mas esses lugares não escapam das atenções da escola quando há notícias de consumo de drogas. E eu gostaria de saber se há tanto ímpeto em suspender ou expulsar um "bully" quanto o que se verifica contra quem fuma maconha.
Não acho autoritarismo dizer que, no caso do "bullying", o que se revela é falta de punição aos que o praticam. É que, como ocorre em outras instituições republicanas, os colégios vão perdendo clareza sobre o que são e o que pretendem.
As escolas particulares cedem espaço para cursinho, aula de inglês, computador, academia, fellow- ships... pais e mães sabem, tanto quanto os alunos, que o colégio não oferece tudo o que devia, ou oferece mal. Das escolas públicas nem é preciso falar.
Em crise de identidade e sem conseguirem fazer-se respeitar, as próprias escolas sofrem da fraqueza, da timidez, do medo que os alunos gordinhos, desajeitados e impopulares tão bem conhecem. A instituição aceita o rótulo de "nerd" e é a primeira a ser espezinhada, antes mesmo do primeiro caso de "bullying" mais sério que venha a registrar.

coelhofsp@uol.com.br

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