São Paulo, Quarta-feira, 15 de Dezembro de 1999 |
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LITERATURA Ariano e Raduan falam de cabras e Dostoiévski
da enviada a Recife Leia a seguir a continuação da conversa entre os autores Ariano Suassuna e Raduan Nassar, que se conheceram em Recife, na semana passada. (MARILENE FELINTO) Raduan Nassar - É, exato, tomando leite de cabra. Aliás, eu
perguntei ontem onde está a sua
criação de cabras. E me disseram
que está na Paraíba. Mas eu não
podia voltar para São Paulo sem
ver sua criação de cabras. Isso seria uma coisa maravilhosa. Ariano Suassuna - Se você demorar, a gente vai lá, não tenha
dúvida. Se quiser, nós vamos. Nassar - Numa próxima vez, eu
gostaria muito de ir. Agora, dessa
vez, uns amigos meus lá de Maceió vão me levar até o sertão. Suassuna - Não, mas aí tinha de
ser ao sertão de Taperoá. É só você mandar dizer quando quer ir
que nós vamos, ficamos lá o tempo que você quiser. Aliás, eu vou
buscar um retrato da casa da fazenda para você ver (sai da sala). Nassar - Eu gostaria de criar gado também, mas como nós estamos fazendo muita lavoura lá, eu
precisava ter um espaço compatível com a criação; não é? Como a
gente tem muita vegetação, árvores e lavoura, torna-se muito difícil... A menos que se fosse fazer
uma criação de cabras confinadas. Mas aí já fica com um ar meio
industrial. Eu gostaria mesmo era
de recuperar a minha infância, a
minha relação afetiva com as cabras e, eu espero que isso não seja
mal interpretado... (risadas na sala). É que a cabra para mim é uma
imagem que toca fundo mesmo, é
uma coisa impressionante. Suassuna - Olhe, Raduan, eu
não sou tão radical quanto você
não, mas eu vou dizer como comecei o negócio de criar cabras.
Eu tenho um irmão que é um sujeito inconveniente. Inclusive ele
vem me visitar, ele chega na hora
em que está todo mundo já saindo da visita. Ele chega 10h30, 11
horas da noite. Aí, um dia, e você
veja se isso é jeito de entrar na casa dos outros, um dia ele foi entrando aqui e me perguntou:
"Ariano, me diga uma coisa, o
que é que você faz?". E eu respondi: "Eu dou aula de filosofia da arte na universidade e escrevo; é isso aí". Então ele disse: "Isso não
vale nada. Se você está lá na universidade ou está aqui, a sociedade nem sabe. Eu vou dizer uma
coisa, só existem duas profissões
realmente importantes, o lavrador e o criador. Todas as outras
são parasitárias. Se eles pararem,
aí você vai ver uma coisa". Nassar - Realmente. São ciências primordiais. Suassuna - Não é? Aí eu disse a
meu irmão: "Tem razão". E no
outro dia comecei a criação de cabras. E eu escolhi cabra exatamente também por causa dessa
relação afetiva. Inclusive, Raduan,
eu só queria um tipo de cabra, que
era uma cabra vermelha que tem
lá, da cor do chão do sertão, um
vermelhão pardo, com uma lista
preta no dorso e os quatro canos,
as quatro patas, também escuros.
Agora, você veja, nessa época, a
gente se deparou logo com a total
ignorância que existe sobre cabras. Os agrônomos, zootecnistas
e veterinários não entendem nada
sobre cabra. São agrônomos de
"bureau", de gabinete, uns burocratas. E a idéia deles era importar
cabra. Nessa época tinha um primo meu que era presidente da Associação Paraibana de Criadores
de Cabra. Então ele me levou uma
carta da empresa exportadora da
Suíça. Nesse ano eles tinham o
propósito de vender para nós cem
animais, dez machos e 90 fêmeas.
Vender para a Paraíba. Então cada animal custava R$ 176 mil, ou
melhor, reais não, cruzeiros; não
é? Cruzeiros. E entregavam no
porto de Santos. A gente ainda tinha o trabalho de mandar buscar,
de se responsabilizar pelo transporte desses animais. Aí eu disse:
"Quanto está uma cabra aqui no
Brasil?". Aí ele disse: "Cr$ 5 mil,
mas as daqui não prestam". Aí eu
disse: "Me diga uma coisa, a cabra
daqui tem chifre?". E ele: "Tem".
"Tem peito?" "Tem." "Se ela cruzar com um bode, nasce um cabrito?" "Nasce." "Então qual é o
problema?", eu disse. Aí ele: "Mas
as daqui dão pouco leite". Eu disse: "Quanto é que dão as daí da
Suíça?". Ele disse: "Dão três quilos
por dia, em duas tiradas". "E as
daqui?" "Dão 500 gramas." Aí, eu
disse: "Então eu compro seis cabras daqui por Cr$ 30 mil e faço os
três quilos". Quer dizer, uma cabra suíça eu faço com Cr$ 30 mil.
Ainda fica uma diferença, já que
só uma de lá custa Cr$ 176 mil.
Então, eu disse a ele: "Agora, esse
ano, eu vou precisar de seis cabras
daqui para fazerem uma cabra
suíça. Agora, para o ano que entra, uma minha vai estar dando
mais do que seis suíças". Ele disse:
"Por quê?". Eu disse: "Porque a
sua morreu, e uma cabra morta,
por melhor que seja, pode ser suíça, o que for, ela não dá 500 gramas de leite" (risadas na sala). Nassar (olhando fotos das cabras) - São pastagens nativas?
Praticamente não se vê vegetação
de porte. Suassuna - É que aqui elas estão
num lugar um pouquinho melhor, mas é caatinga mesmo, não
tem muita vegetação; não é? Elas
já estão dando dois quilos e 800
gramas de leite. E a gente não consegue mais porque a gente não
quer, Raduan, porque se a gente
refinar muito na produção de leite, ela perde resistência, tem de
ser uma coisa equilibrada. Nassar - É aí que entra a introdução do sangue novo, não é? Pode entrar com um reprodutor.
Basta um reprodutor; não é? Suassuna - Entrou. Entrou
aqui; viu? Foi exatamente esse cabrito aqui (mostra foto), uma raça
homóloga. Porque eu descobri,
Raduan, que só existem duas raças de cabra, a raça asiática e a européia. A nossa é a européia, que é
a pirenaica. Eu arranjei um reprodutor de linhagem leiteira e do
meu jeito. Uma raça que tem uma
listra escura, que é esse cabrito
aqui (mostra foto). Eu ganhei ele
de presente. E no dia que eu ganhei, para celebrar o presente, os
meus amigos que me deram me
abriram um queijo de cabra da
Serra da Estrela, em Portugal, e
um deles disse para mim -e você
veja, Raduan, como a literatura é
um vício doentio-, ele disse para
mim: "Esse queijo me foi dado
pelo bisneto de Almeida Garret".
Foi aí que batizei o bicho, o reprodutor, de Garret (risadas na sala). Nassar - E ele agora está lá ou já
morreu? Suassuna - Ele já morreu, mas
deixou 52 fêmeas, além dos machos. E ele fez com as vermelhas,
com as brancas e com as pretas.
Depois de aprontar o trabalho
com a vermelhas, foi com as brancas e as pretas, para prestar homenagem ao Brasil, não é? Às três raças (risadas). Nassar - O plantel tem quantas
cabeças hoje? Suassuna - Tem umas 1.200. As
brancas estão separadas; não é?
Agora, para melhorar as pretas, a
gente trouxe murciana, que é uma
cabra espanhola, que é do mesmo
tronco e é muito boa e resistente.
A murciana acho que é a melhor
cabra do mundo. Mas quando a
gente estava fazendo o rebanho,
viu, Raduan, chegavam uns amigos meus com uma história de
POI, animal POI, puro de origem
importada. Nassar - É, tem o POI e o PI. Suassuna - Exatamente. Mas eu
tenho um amigo que dizia assim:
"Não, é POD, puro de origem daqui mesmo" (risadas na sala). Nassar - Mas vocês fazem reprodutoras para terceiros? Suassuna - Sim, sim, fazemos. Nassar - Agora, a carne de cabrito eu acho levíssima, excelente.
Eu acho a melhor carne, depois da
de peixe. Muito leve, muito saborosa. Mas não é bom falar em corte, não é, para o criador? Suassuna - Sim, porque a gente
não mata muito. Sou mais criador. A gente faz queijo também. Nassar - Ariano, você fez um
pronunciamento, nos anos 80,
que foi o que mais me impressionou, quando você disse que não
queria mais receber livros, que
não queria saber de literatura, e
eu carrego essa sua fala comigo
pela vida. Então (entrega exemplar de "Lavoura Arcaica" a Ariano), isso aqui não é um livro. Não
interprete como livro, por favor.
(Ariano gargalha, risadas na sala.) Folha - Faz de conta que é uma
cabra. (Mais risadas na sala.) Nassar - Foi um pretexto para
registrar a minha presença aqui. Suassuna - Ora, mas você sabe.
Você sabe o que eu penso dessa
cabra (risadas). Nassar - Aliás tem uma cabra aí
(referindo-se a capítulo de "Lavoura Arcaica" que tem uma cabra como tema). Suassuna - Mas eu dei uma entrevista a Pedro Bial em que disse
que "Lavoura Arcaica" é uma das
coisas que me fazem acreditar no
Brasil e no povo brasileiro. Nassar - Eu soube disso, mas
não vi a entrevista. Pergunta - Mas, Raduan, e você
parou mesmo de escrever? Nassar - Ah, é definitivo. Eu parei em 84. Estou muito envolvido
com a agricultura hoje. Pergunta - Você seguiu o conselho do irmão de Ariano, então. Suassuna - Pois é. É verdade
mesmo. Nassar - Eu não sou, por exemplo, como Osman Lins, de quem
eu estive muito próximo no último ano de vida dele. Ele era um
apaixonado por literatura, ele falaria 24 horas por dia sobre literatura se deixassem. Eu, ao mesmo
tempo que tive muita paixão pela
literatura, aliás houve um período
da minha vida em que eu não
conseguia pensar em outra coisa,
houve inclusive uma série de recusas em relação a muitas oportunidades, tudo para poder me dedicar à literatura, ao mesmo tempo, eu sempre tive muita dificuldade de privilegiar o escritor como os escritores se privilegiam.
Tenho muita dificuldade de hierarquizar profissões. Eu acho que,
como diz o Ariano, o agricultor é
tão ou mais importante. Suassuna - Eu não sei se você
sabe disso, Raduan, mas no caminho daqui para a Paraíba tem
uma casa inacabada. Na estrada a
gente passa por ela. O dono sonhou que, quando acabasse a casa, ele morreria. Aí ele resolveu
não acabar a casa nunca. Pois eu
desconfio que estou fazendo a
mesma coisa com esse livro que
estou escrevendo agora, que já faz
muitos anos que venho escrevendo e que não tem título ainda. Eu
resolvi não morrer, não sei se a
morte vai aceitar, se ela está de
acordo. Mas eu acho que vou ficar
fazendo ele, como o homem da
casa, para ver se eu escapo. Pergunta - É um romance urbano? Folha - Há quantos anos está
escrevendo? Pergunta - O trabalho na secretaria atrapalhou? (Suassuna
foi secretário de Cultura do governo de Miguel Arraes, em Pernambuco, de 94 a 98). Nassar - Mas essa questão do
romance grande ou pequeno,
quando o romance é bom, a gente
não quer que ele acabe, não é? Suassuna - É. Isso é. Só que eu
não posso partir desse pressuposto; não é? Porque assim eu estou
perdido. Mas você sabe, Raduan,
eu tive uma experiência terrível. Nassar - Pois é. E o trabalho
com a linguagem pode ser uma
fonte de desfrute, mas eu acho
que o que pega mesmo o leitor é
sobretudo a história. Tanto que
certos livros de autores estrangeiros que fazem parte da formação
da gente, nós lemos em traduções,
numa linguagem quase convencional. E às vezes até por meio de
más traduções. Suassuna - Não sei se você sabe
que acusavam o Dostoiévski de
escrever mal. Uma vez eu li ele se
defendendo disso que, aliás, não é
verdade. Ele era, além de grande
escritor, quase profeta, um escritor hábil, que escrevia verdadeiros romances policiais. Mas, Raduan, uma vez você disse numa
entrevista uma coisa sobre a família que me tocou muito. Eu também sou daquele jeito. Por isso
mesmo sou acusado de arcaico. Nassar - Então somos dois. Suassuna - Mas agora eu vou
pegar para vocês verem, uma versão desse romance que estou escrevendo mas que abandonei.
(Sai da sala e volta trazendo grandes pastas onde guarda textos,
poemas e iluminogravuras que
comporiam o novo romance.) Nassar (vendo o material)
-Mas isso é uma maravilha, olha
só. Suassuna - Mas me diga se esse
seu novo amigo aqui tem juízo,
porque isso aqui (as grandes folhas de iluminogravuras) a gente
não tem nem como ler. Essas seriam algumas das ilustrações do
romance. Você imagine a doidice. Nassar - E são suas as ilustrações? Suassuna - É, são minhas. Nassar (vendo ilustrações com
motivos eróticos) - Mas isso é
uma maravilha. Isso tem de ser
visto com calma, vá mais devagar.
Tem uns detalhes ótimos, viu,
Ariano? (Gargalha.) Eu gostaria
de ver sozinho. (Gargalhadas na
sala.) Tem muita descoberta para
fazer aqui. Ninguém escapa ao
fascínio do obsceno, não é ?
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