São Paulo, sexta-feira, 15 de dezembro de 2000

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"ATIREM NO PIANISTA"

Truffaut revisita policial noir obscuro com destilada ironia



LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS


S ão pequenos detalhes que separam o sucesso revolucionário de "Acossado" (60), de Godard, da carreira obscura de "Atirem no Pianista" (60), de François Truffaut. Sabe-se que Truffaut é o autor do roteiro original de "Acossado", filme que reflete a paixão dos dois então jovens diretores pelos romances "série noire" e filmes B americanos.
Glosando e parodiando seus modelos, Godard lançou a montagem descontínua e o distanciamento irônico, criando um estilo para sempre imitado e jamais igualado. Em "Atirem no Pianista", porém, fica clara a origem truffautiana de vários desses trunfos iniciais de Godard. Truffaut, aliás, precedera Godard no sucesso: em 59 surpreendera o mundo com "Os Incompreendidos".
A paixão pelo romance policial desponta a seguir em "Atirem no Pianista". Mas a brusca mudança de assunto e ainda a comparação forçosa com a obra-prima de Godard impediram que na época o filme alcançasse o reconhecimento merecido. A presença do cantor Charles Aznavour, idolatrado na França e famoso no mundo, tampouco garantiu o glamour. Faltou talvez um ícone feminino do porte de Jean Seberg ("Acossado"), apesar de o filme conter três beldades: Marie Dubois, Nicole Berger e Michèle Mercier.
E talvez o romance que deu base ao filme, "Down There", de David Goodis, contivesse, como é próprio do gênero policial, um enredo excessivamente intricado, que Truffaut não conseguiu enxugar.
A abertura do filme é um exemplo primoroso. Um bandido, de nome Chico, foge a pé de seus comparsas, que o perseguem de carro numa cena típica hollywoodiana. De repente, por estar olhando para trás, tromba com um poste e cai, quase desacordado. É, então, socorrido por um transeunte carregando um buquê de flores, que explica ao acidentado que as flores são para sua mulher. Inicia-se, assim, um diálogo dos mais amigáveis sobre as venturas e desventuras do casamento, que faz o acidentado esquecer sua verdadeira situação.
Chico se refugia junto ao irmão, Charlie (Aznavour), um pianista de bar, que se vê, por isso, perseguido pelos comparsas do irmão. Ao mesmo tempo, Charlie se envolve com a garçonete do bar, que o leva a narrar, num longo "flashback", sua vida como concertista de sucesso, carreira encerrada bruscamente com o suicídio da primeira mulher.
Afora a melancolia permanente do pianista frustrado (e aqui Aznavour adquire a mesma expressão melancólica do próprio Truffaut), todos os outros personagens são tipos irônicos, mesmo quando morrem (ressonâncias de Godard ou o contrário?). Esse aspecto se vê acentuado pela magnífica câmera de Raoul Coutard (o mesmo de "Acossado"), que produz, a cada tomada, o pequeno milagre de dar o mesmo destaque à pessoa e à cidade (ou ao cubículo) onde ela mora. Assim rebaixa o personagem de soberano da história a cidadão do mundo.
Rever "Atirem no Pianista" é uma oportunidade de identificar a matriz de técnicas narrativas que mudaram o cinema.



Atirem no Pianista
Tirez sur le Pianiste
    
Direção: François Truffaut
Produção: França, 1960
Com: Charles Aznavour, Marie Dubois Quando: a partir de hoje no Top Cine




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