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"ATIREM NO PIANISTA"
Truffaut revisita policial noir obscuro com destilada ironia
LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
S ão pequenos detalhes que
separam o sucesso revolucionário de "Acossado" (60), de Godard, da carreira obscura de "Atirem no Pianista" (60), de François
Truffaut. Sabe-se que Truffaut é o
autor do roteiro original de
"Acossado", filme que reflete a
paixão dos dois então jovens diretores pelos romances "série noire" e filmes B americanos.
Glosando e parodiando seus
modelos, Godard lançou a montagem descontínua e o distanciamento irônico, criando um estilo
para sempre imitado e jamais
igualado. Em "Atirem no Pianista", porém, fica clara a origem
truffautiana de vários desses trunfos iniciais de Godard. Truffaut,
aliás, precedera Godard no sucesso: em 59 surpreendera o mundo
com "Os Incompreendidos".
A paixão pelo romance policial
desponta a seguir em "Atirem no
Pianista". Mas a brusca mudança
de assunto e ainda a comparação
forçosa com a obra-prima de Godard impediram que na época o
filme alcançasse o reconhecimento merecido. A presença do cantor Charles Aznavour, idolatrado
na França e famoso no mundo,
tampouco garantiu o glamour.
Faltou talvez um ícone feminino
do porte de Jean Seberg ("Acossado"), apesar de o filme conter três
beldades: Marie Dubois, Nicole
Berger e Michèle Mercier.
E talvez o romance que deu base
ao filme, "Down There", de David
Goodis, contivesse, como é próprio do gênero policial, um enredo excessivamente intricado, que
Truffaut não conseguiu enxugar.
A abertura do filme é um exemplo primoroso. Um bandido, de
nome Chico, foge a pé de seus
comparsas, que o perseguem de
carro numa cena típica hollywoodiana. De repente, por estar
olhando para trás, tromba com
um poste e cai, quase desacordado. É, então, socorrido por um
transeunte carregando um buquê
de flores, que explica ao acidentado que as flores são para sua mulher. Inicia-se, assim, um diálogo
dos mais amigáveis sobre as venturas e desventuras do casamento, que faz o acidentado esquecer
sua verdadeira situação.
Chico se refugia junto ao irmão,
Charlie (Aznavour), um pianista
de bar, que se vê, por isso, perseguido pelos comparsas do irmão.
Ao mesmo tempo, Charlie se envolve com a garçonete do bar, que
o leva a narrar, num longo "flashback", sua vida como concertista
de sucesso, carreira encerrada
bruscamente com o suicídio da
primeira mulher.
Afora a melancolia permanente
do pianista frustrado (e aqui Aznavour adquire a mesma expressão melancólica do próprio Truffaut), todos os outros personagens são tipos irônicos, mesmo
quando morrem (ressonâncias de
Godard ou o contrário?). Esse aspecto se vê acentuado pela magnífica câmera de Raoul Coutard (o
mesmo de "Acossado"), que produz, a cada tomada, o pequeno
milagre de dar o mesmo destaque
à pessoa e à cidade (ou ao cubículo) onde ela mora. Assim rebaixa
o personagem de soberano da história a cidadão do mundo.
Rever "Atirem no Pianista" é
uma oportunidade de identificar
a matriz de técnicas narrativas
que mudaram o cinema.
Atirem no Pianista
Tirez sur le Pianiste
Direção: François Truffaut
Produção: França, 1960
Com: Charles Aznavour, Marie Dubois
Quando: a partir de hoje no Top Cine
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