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São Paulo, segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

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CRÍTICA

Palavras fora do lugar reaquecem a TV

CRÍTICO DA FOLHA

No meio do seu zap tedioso, você ouve lá da TV umas palavras que recorda do tempo das prova de literatura do colégio. É a história de um amanuense, pobre barnabé, alma penada do serviço público, personagem de Artur Azevedo no conto "De Cima para Baixo". É a ótima história da estupidez das hierarquias: um esporro do ministro vai descendo até alcançar o último dos funcionários. Sem ter em quem se vingar, o desalmado manda um pontapé no mais pulguento dos vira-latas.
Será um pesadelo que precede o sono? Amanuense? Mas a voz que narra é conhecida, talvez da própria televisão, do cinema. É o ator Matheus Nachtergaele que relata o acontecido. Em um tempo em que vemos televisão cada vez mais sem ver nada, apenas mascando uma espécie de chiclete para os olhos, são as palavras que saltam dos "Contos da Meia-Noite" que nos reapresentam à TV. O que poderia espantar, atrai, nem que seja por minutos.
É sempre um perigo juntar a arrogância ressentida da literatura com a porosidade dos gestos de um certo teatro. Eder Santos, o diretor do programa, ainda ligou a isso alguns recursos das peças comerciais, como a projeção de imagens sobre atores. Enxugou tudo na edição, deu surrealismo às imagens e soltou uma sonoplastia parecida com o hiper-realismo das novelas de rádio.
Mas isso é visto por causa do estranhamento das palavras fora de lugar. Em "Um Apólogo", de Machado de Assis, contado por Marília Pêra, ouvimos uma linha dizer para uma agulha que é ela a artista, é ela que dá "feição aos babados". Aqueles babados, que não são os "babados fortes" do léxico clubber, chamam-nos de volta ao sofá, à TV.
"Zap", ótimo conto (no papel) de Moacyr Scliar, não oferece a mesma perturbação, pois trata do controle remoto, o que só serve para ampliar a dose de metalinguagem, esse recurso que virou uma desgraça moderninha na televisão. O Simões Lopes Neto por Beth Goulart, com "Duelo de Farrapos", sim, uma doideira.
Mas nada que se comparasse ao que fez Maria Luisa Mendonça com "A Medalha", de Lygia Fagundes Telles. Que mulher entorpecida, parece que saiu sempre de uma vasta nuvem de ópio. Fez o impossível: que um conto parecesse melhor na TV do que no livro. E a direção assombrou ainda mais a meia-noite, com um gato à Edgar Allan Poe contracenando com a moça. (XICO SÁ)


Contos da Meia-Noite     
Quando: seg. a sex., à 0h, na TV Cultura



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